As coisas e as coisas
por maneco nascimento
“(...) As coisas estão limpas, ordenadas./O corpo gasto renova-se em espuma./Todos os sentidos alerta funcionam./A boca está comendo vida./A boca está entupida de vida./A vida escorre da boca,/lambuza as mãos, a calçada./A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.”
(Carlos Drummond de Andrade: “Passagem do Ano” In A Rosa do Povo, 29ª. Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2005)
A nossa velha e provinciana Teresina de verdes anos sempre teve das suas. Com sua gleba de senhores de engenhosa posse de poder determinante, vê-se definidora dos dias, das heranças, das folgas, flagrantes e delitos maquiados, mas especialmente das dobras, rugas e maneirismos da política, polícia e da justiça dos seus.
Uma nova velha história se repete e ganha contornos de sensação, marca de posse e poder da informação, maquinarias azeitadas para controle do discurso que segue ao público, fofocas oficiosas, “oficiais” e deslumbrantes, lendas urbanas e, um muito da imprensa que, no cumprimento de seu papel, não deixa que a batata esfrie, mesmo que esteja transgenizada.
(manifestação de 2 mil pessoas por justiça/foto: acervo 180 graus.com)
Assim, o mundo das domésticas, dos carteiros e das estudantes de direito, de classe ascedente ao céu das tragédias, casa de ades, se sobrepõe as vidinhas contumazes dos homens, mulheres, brancos e burgueses que ganham a sorte domando a falta de sorte dos “inferiores”.
Durante dois longos meses, de especulações, notícias e shows à mídia sedenta de célebres informações, se testemunhou os discursos de investigações, defesas veementes, averiguações escorregadias e comoção familiar ganharem seu turno de manifestação social. Todos com seu direito democrático de manifestar-se.
(imagem da moça viva/morta/acervo: clicapiauí.com)
(imagem da moça viva/morta/acervo: clicapiauí.com)
O caso parece ser + um caso (in)comum entre os já vistos e ou acompanhados com clamor pela população. Morrem os Marcos Leonardos e as Fernandas Lages, protagonistas imposto(a)s de “crimes perfeitos”, de recém proximidade da memória local. E o tempo em seu tempo parece que continuadamente dará cabo das coisas das coisas.
“Garota não vá se distrair/E acreditar que o mundo vive com a inocência desse teu olhar/Você se engana e se dá mal, com tipinho anormal/E a sociedade vai te condenar/Morreu violentada porque quis!/Saía, falava, dançava,/Podia estar quieta e ser feliz/calada, acuada, castrada...” (“Mônica”: Ângela Ro Rô)
As casas assépticas; as chácaras paradisíacas e seus “demônios” em noites de bacanais às bordas das piscinas e ao redor das fogueiras das fertilidades sexuais; os dramas e tragédias posterizadas às vezes de Carmens, de Bizet; as lendas urbanas e as legendas e as legendas das cartas marcadas.
“(...) Aída Curi era rock, Aracelli balão mágico/Cláudia Lessin a geração Reich,/O que eu não vou classificar/É a dor do pai, a dor da mãe/Que ela poderia ser, mas não vai/Queremos o seguinte no jornal/Quem mata menina se dá mal/Sendo gente bem ou marginal/Quem fere uma irmã tem seu final”(Idem)
Distraidamente “moças voam de edifícios, feito avião” e, sem conhecimento do mito de Dédalo ou sonho de Ícaro, decaem ao + profundo das prisões mortais. Flagrada, morta, esborrachada e, em paráfrase a nobre poesia drummoniana “a noite geral prossegue, a manhã custa a chegar...” mas a moça estatelada, ao relento, perdeu todo o viço e juventude na pressa de alçar horizontes com asas de cera.
Do 25 de agosto que, no imaginário popular, seria um mês “reimoso” herda-se um crime sem autor? Em que parece que ninguém em seu juízo (im)perfeito, mesmo muito alterada se laceraria para depois lançar-se ao vácuo da liberdade acuada. Fuga da hipótese do suicídio, a não ser que nasça chifre em cabeça de jumento, como diz o ditado popular. E quem sabe até confundiria a opinião pública com outra lenda fabular, a do unicórnio.
Então, fique-se com outra hipótese para obra de porteiras escancaradas, a de homicídio sem criminoso? Caso as letras da lei transformem o “incidente” (in)feliz, ao(s) autor(es), em culposo, sem qualquer intenção de matar, então a ficção estará concluída. Quem matou Fernanda, nessa selva de vestígios de senhores de pedra foi Janete Clair, ou (o)a assassin(o)a de Odete Hoitman.
Os doutores da polícia, da política e da justiça, controlem as rédeas da mora. Quem mandou a moça atravessar na frente do prédio do Ministério Público Federal, na avenida João XXIII, zona Leste de Teresina. Por plantar-se em terras de homens que constroem obras para alcançar os céus, acabou sendo enterrada sob história obscura.
(sorriso,sapato em franco envelhecimento, prédio e reconstituição do crime/acervo: tvcanal13.com)
(sorriso,sapato em franco envelhecimento, prédio e reconstituição do crime/acervo: tvcanal13.com)
Há um cisco no olho vigilante da Cico (Comissão Investigadora do Crime Organizado). Precisa ser lavado em água clara de despacho cristalino. Uma trave no olho coletivo que talvez gangrene os dias da cidade tão ansiosa por transparência e justiça social. Embora, como disse o poeta, “a vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.”
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