Cem anos...
por maneco nascimento
“(...) O tempo de saber que alguns erros caíram, e a raiz/da vida ficou mais forte e os naufrágios/não cortaram essa ligação subterrânea entre homens e coisas:/Que os objetos continuam, e a trepidação incessante/não desfigurou o rosto dos homens;/que somos todos irmãos, insisto (...)” (“Os últimos dias” in A Rosa do Povo/ Carlos Drummond de Andrade, 29ª. Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2005)
(C. A. D. no calçadão de Copacabana/acervo foto: http://www.algumapoesia.com.br/ -"Drummond: 100 Anos - 1902 - 2002")
Que o “Sentimento do mundo” (1940) me tenha tornado, mesmo que mal leitor, mas apaixonado pelo Drummond e sua poesia franca, política, se lírica, prática e cheia de buscas, meticulosamente à procura da poesia para penetrar “(...) surdamente no reino das palavras./ Lá os poemas que esperam ser escritos./Estão paralisados, mas não há desespero,/há calma e frescura na superfície intata./Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário (... )" (“Procura da Poesia” in A Rosa do Povo/ Carlos Drummond de Andrade, 29ª. Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2005)
E todas as palavras recheadas de memórias de Itabira, ou de dias e noites cariocas e de histórias reais que perpassam a alma alerta do poeta de olhos abertos ao mundo das coisas e das criaturas que ocupam as horas, as ruas, os sinais e sons e barulhos que substituem os sinos das cidades e suas simples vidas de província.
“(...) Uma parte de mim sofre, outra pede amor,/outra viaja, outra discute, uma última trabalha, sou todas as comunicações, como posso ser triste? (...) (“Os últimos dias” in A Rosa do Povo/ Carlos Drummond de Andrade, 29ª. Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2005)
Sua tranqüilidade de bom observador e atento aos movimentos do mundo, ser poema e crítica e arte e denúncia “(...) Meus olhos são pequenos para ver/a distância da Casa na Alemanha/a uma ponte na Rússia, onde retratos/cartas, dedos de pé bóiam em sangue (...) Meus olhos são pequenos para ver/a fila de judeus de roupa negra,/de barba negra, prontos a seguir/para perto do muro – e o muro é branco (...)”(...)(“Visão 1944” in A Rosa do Povo/ Carlos Drummond de Andrade, 29ª. Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2005)
E ganha raios de franca extensão aos leitores, amantes, apaixonados, pesquisadores, teóricos e modernos senhores da pena e letra poética e, dessa visão dos mundos em todo o derredor das gentes brotam das tintas em negro sobre o branco papel “Consideração do Poema” em que “Não rimarei a palavra sono/com a incorrespondente palavra outono (...)”.
E ainda “A Flor e a Náusea” em que os dias da vida moderna estarrecem-se em poesia “(...) Uma flor nasceu na rua!/Passem de longe, bondes, ônibus, rios de aço do tráfego./Uma flor ainda desbotada/ilude a polícia, rompe o asfalto./Façam completo silêncio, paralisem os negócios,/garanto que uma flor nasceu (...)” e nos comove, incomoda e radiografa toda a ternura do poeta em disfarçada ironia do outro em um.
E não bastassem as belas crônicas produzidas ao longo de vida rara de homem e suas horas de gente simples, mas incorporado às memórias, à história e ao mundo real do novo velho homem das cidades retratadas, sua prosa poética nos abraça ao “Caso do Vestido”, “(...) Minhas filhas, é o vestido/de uma dona que passou (...) Minhas filhas, eis que ouço/vosso pai subindo a escada (...)”
E a “Morte do Leiteiro”, crítico-social a sangue frio “(...) Há pouco leite no país,/é preciso entregá-lo cedo./Há muita sede no país,/é preciso entregá-lo cedo./Há no país uma legenda,/que ladrão se mata com tiro (...) mas o leiteiro/estatelado, ao relento,/perdeu a pressa que tinha (...) duas cores se procuram,/suavemente se tocam,/amorosamente se enlaçam,formando um terceiro tom/a que chamamos de aurora.”
C. D. A sentado a espiar o mundo/acervo foto: http://www.algumapoesia.com.br/ -"Drummond: 100 Anos - 1902 - 2002")
C. D. A sentado a espiar o mundo/acervo foto: http://www.algumapoesia.com.br/ -"Drummond: 100 Anos - 1902 - 2002")
O Bom e grave Carlos que nascido sem saber, ainda, que gauche “(...) um anjo torto/desses que vivem à sombra, disse:/- Vai, Carlos, ser gauche na vida” e assim o belo Drummond em “Eu versus Mundo” assina identidade assimétrica para “(...) Eu maior que o Mundo/Eu menor que o Mundo/Eu igual ao Mundo.”
Meu amor Carlos Drummond de Andrade escreveu sobre esperanças, flor, sentimentos de paz e dos horrores da grande guerra, vidas e desaparecimentos, poesia e orquídea antieuclidiana e “Carta a Stalingrado”, “Telegrama de Moscou”, e + nos demonstrou que “Mas viveremos” para novas rosas e povos tantos germinados de “Alguma poesia” e todo o mundo grande e pequeno drummondiano.
Poetas e homens, mundos de Raimundos e Andrades. Releituras do gauchisme brotaram de Torquato “quando eu nasci/um anjo louco muito louco/veio ler a minha mão (...) eis que esse anjo me disse/apertando minha mão/com um sorriso entre dentes/vai bicho desafinar/o coro dos contentes (...)” : Let’s Play That, e de Chico, “Quando eu nasci veio um anjo safado/o chato dum querubim/E decretou que eu tava predestinado/A ser errado assim/Já de saída a minha estrada entortou/Mas vou até o fim ...): Até o Fim.
Para a Rosa do Povo (1945) sentenciou: “Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento moral é o mesmo – e está dito o necessário.” Carlos Drummond de Andrade.