“Quatro Soldados”
por maneco nascimento
História brasileira, de
fronteiras da construção social nacional, século 18 (1754), jesuítas, portos,
cabarés, obscurantismo em retirada, cotidiano provinciano em terras ermas,
superstições, ignorância, iluminismo tupiniquim de personagens, leitores e leituras,
contrabando de livros, literatura histórica, ficção embasada em talento e
curiosa atenção a dados históricos.
Vívida arte de lidar bem com as
letras para tramas e enredos inteligentes, ricos de detalhes. Leitura
simples a qualquer bom entendedor da complexa história contada com efeito de
refinado ato de escrever.
Um menino órfão de mãe, no parto,
rejeitado pelo pai e salvo pelo anjo da guarda (um oficial do exército imperial)
que o convence à carreira militar. O alferes Licurgo, o primeiro herói da trama
que comete suicídio ao fim do primeiro capítulo. O impacto de entrada da obra,
capaz de frustrar o leitor.
O que se descobre, no segundo
capítulo, é que o mocinho errou o dia da própria morte. O tiro do lado esquerdo
poupou seu coração, este plantado no lado direito do peito. É salvo por quem
fora matar. Da nova amizade desenvolve o ato de ler, ouvir e amadurecer a humanidade em
construção, apesar dos dezesseis anos de idade.
Antonio Coluna, branco, de família
tradicional, herdeiro de posses, mas que não dá muita importância, prefere construir
a própria fortuna crítica. De boa educação. Escolheu a carreira militar, homem
justo, o bom herói, solitário. Também componente dos Dragões do Império,
carreira segura nas terras hostis do novo mundo. Envolto na guerra suja para
front de jesuítas, índios gentis e filhos aldeados da Companhia de Jesus,
espanhóis e gentios aliados, brancos portugueses, povoadores da terra, bugres, mandantes e matadores de aluguel.
Andaluz, o herói apaixonante,
pegador de todas as mulheres que quiser e desejado por todas as outras.
Viajante de outras terras e mares, registro de aventuras das mais diversas. O
que o salva, em terras brasileiras, naquele povoado de convivência de comuns,
prostitutas, bares, jogos, superstições, ignorância, corrupção moral e
política (hábitos estes que não condena) é o fato de ser letrado, ter lido boas
e grandes obras, especialmente as proibidas pela Igreja e pelo Rei.
Amigo de corsários, marinheiros,
comandantes de navios, filho de tipógrafo e com irmãos no ramo de tipografia,
consegue contrabandear, da Europa ao Brasil, livros raros para deleite de si
mesmo e aos clientes leitores na província.
Amado por alguns e odiado por muitos
outros, fugitivo de “erros” do passado, cão Andaluz é o exemplo do homem viril,
atlético, fascinante e de inteligência garimpada pelas experiências. O gigante
cego e protetor da cidade, com conhecimento científico constatado
a partir de obras lidas, é o requisitado a resolver problemas de bagunça, de
crimes e outras exigências que o povo, sozinho, não encontraria a solução.
Humanista, iluminista, cínico, anarquista, ótimo amante e solidário.
O herói moderno, indispensável a romances
sitiados em contextos medievos, orbitados no século das luzes. O livro + aguardado
a consumo próprio e que o distrairá da mesmice local é A Enciclopédia. Até onde
o romance acaba, ainda não conseguiu a proeza de que seus fornecedores lhe
enviem a grande Obra.
Soldado Silvério, cruel,
sanguinário, assassino de aluguel, frio e determinado a cumprir uma missão. O
Índio Branco, como ficou lendariamente conhecido, mata qualquer um que esteja
no caminho dos interesses de portugueses e proprietários povoadores do país. Novos sesmeiros, jesuítas e aliados da Companhia de Jesus podem cair
na lista do matador.
Órfão, foi criado em orfanato
protegido por seminário, conseguiu tradicional educação religiosa e moral e
algum apoio financeiro, em troca de favores pessoais doados aos padres
acolhedores. Perfil esfíngico e pragmático senso de dever.
Quatro Soldados, obra do gaúcho
Samir Machado de Machado, desenvolve um enredo cheio de humor e inteligência criativa
em intertextual construção literária histórica. Homenageia mulatas do
Sargentelli, em personagens de prostitutas da casa de Joana Holandesa, a cafetina
do pedaço. A mulata Adele de Fátima é um dos exemplos.
(Samir M. de Machado/foto: Fred Cabral)
Muralhas e torres
intransponíveis, com suas armadilhas, labirintos, corredores, escadarias, ricas
bibliotecas, animais ferozes e monstros fantásticos e fatais são algumas das
licenças tomadas pelo autor para dar sabor de leitura e prender o leitor.
O dialogismo indireto na terceira
pessoa, por vezes perde essa característica e o autor mantém conversa com o
leitor numa tendência à prática machadiana. Aproxima aquele que lê da personagem
narradora (quase sempre em terceira pessoa), confundida com o autor em diálogo direto com o
leitor.
Obra pulsante em trezentos e vinte
páginas, Quatro Soldados foi lançada, em agosto de 2013, na cidade de Porto Alegre, pela editora Não-Editora. Não só confirma Samir Machado de Machado como autor descolado, como reitera
o natural rigor da pesquisa à construção de sua trama e seus dramas invertidos
em verdade da ficção.
Literatura ágil, competente e, especialmente, dona da boa
escrita.
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