ou tranca a porta de vez
por maneco nascimento
No último dia 30 de janeiro, com temporada estendida aos dias 31 e 1 de fevereiro, estreou a tão festejada A República dos Desvalidos que, noutras montagens, assinava como Itararé, a República dos Desvalidos.
O espetáculo, com visão dramatúrgica de cena, implementado por Arimatan Martins, abriu campos de estreia no Theatro 4 de Setembro, a partir das 20 horas, para público entre curiosidade e ansioso por ver as novidades que viriam, nessa nova direção, assomadas às anteriores, de 1986 e 2006.
A República dos Desvalidos, com produção executiva e coordenação geral de Zé Afonso de Araújo Lima, cumpriu o rito de passagem a + um dado na história e memória do Grupo de Teatro Pesquisa - Grutepe.
Com apoio financeiro aportado, por intermédio do Sistema Estadual de Incentivo à Cultura - Siec e renúncia fiscal do governo do estado a empresas parceiras de projetos artísticos culturais, o espetáculo disse, + uma vez, a que veio e a quem serve, ao teatro amador do Piauí.
A peça mantém a mesma força de sempre, com o teatro popular, histriônico de apelo ao riso e endosso do gargarejo e detém tema sobre cotidianos simples, instalados em casinhas sorteadas pelo Sistema Habitacional de moradias populares.
A vida dos novos moradores é exposta e , na radiografia, as intrigas, futricas, maledicências, amizade vizinha, beataria e fé sincrética se afunilam nas periferias sociais, instaladas à reflexão no texto de Zé Afonso Lima.
A cenografia se fecha numa semi lua, às vezes de empanada de circo, com cortinas em cores sóbrias de dupla tessitura que, a certa altura da narrativa, uma peça de tecido é valorizada ao que a outra é franzida e amarrada, nas vezes de descanso de um matiz. E, ao céu do picadeiro, um móbile ilustra casinhas presas, suspensas por fio, a um guarda chuva, como dialética do "inalcansável" sonho da casa própria.
De Emanuel de Andrade, a cenografia se complementa com o carrinho de mão, adereçado por Wilson Costa, composto por casinhas coloridas à representação de miniatura do conjunto habitacional que, feito brinquedo alegre, é movido a reboque das emoções e marcas dramáticas que a encenação sugira.
A música, ao vivo, com Aurélio Melo (diretor musical), Paulo Aquino, Gustavo Baião, Wilker Marques e Gilson Fernandes, também compõe à área cenográfica de mapeamento a efeito dramatúrgico. A propósito, a direção musical, arranjos e performance dos músicos trazem equilíbrio ao espetáculo, do começo ao fim da história narrada.
Suavidade, tranquilidade sonora e impulsos cardiodramáticos, quando a energia na energia da cena suscita, preenchem de feliz musicalidade os tempos, de partitura, aliados ao maior ou menor desempenho dos atores e atrizes, enquanto cantam.
A luz de A República dos Desvalidos, construída por Assaí Campelo e Pablo Erickson, está presente e cria variações ao calor das emoções e sentimentos vorticizados por intérpretes, texto e direção e dinamizam a simplicidade cenográfica apresentada como propósito, crê-se, a + valia das personagens.
Os figurinos (Bid Lima) diversificam-se ao olhar da plateia e vão se formalizando às trocas de peles das personagens. Têm pesquisa que dramatizam ora, relaxam outras e caleidoscopam as nuances lúdicas das periferias bem vestidas, ao efeito, que teatral, e possam repercutir a diversidade das gentes simples, com suas cores expansivas, maneirismos de composições, modas e modos particulares de vestir-se.
Mas são requintados, a olhos reais, à carnavalização, desfile de luxo e riqueza, com detalhes que, nas variações e trocas de vestimentas, as personagens estão sempre a preencher a vida de coloridos e práticos acessórios.
O ilustrativo ostentador para ganhar a atenção da plateia. Não desmerece o discurso dos estreantes moradores, em suas novas aquisições de moradias, contidas nas franjas sociais acaloradas no conjunto habitacional. Cria um paralelo entre o viver comezinho dramatúrgico e o vestir requintado a bem definir a plástica e estética da segunda pele das personagens.
A sonoplastia e operação de som direto, Zé Dantas, alia-se à direção musical de Aurélio M. e desliza silenciosa e econômica nas vagas dramáticas. A direção de ator e cena, de Arimatan Martins, está na boa média de seu olhar dramatúrgico. Ainda há, preservadas, - e isto está no discurso da memória e história de montagens anteriores que beneficia José da Providência e Zé Afonso, o primeiro como o grande merecedor de destaque nesta versão de 2014, - reminiscências de demarcações cênicas anteriores.
Às novidades de Ari vêm com a delicada, farsesco histriônica, ação da lenda do Cabeça-de-Cuia em transversal com a agonia e morte do Cisne Negro. A concentrada acuidade premeditada do diretor à interpretação da atriz Vera Leite, com preparação de corpo facilitado por Fernando Freitas, verifica um diferencial ao todo da narrativa dramática proposta.
Seu contraponto, Fábio Costa, se não correspondeu ao esforço limpo e detalhado no dialogismo agonizante do Cisne, também não comprometeu a cena. Sem sair de sua zona de conforto e nem dispensar melhor inflexão à contracena da mãe em prenúncio da própria morte, ficou no lugar comum, mas meio distante das aceleradas falas de outras momentos do espetáculo.
A direção, na abertura da narrativa, interpõe a alegria do circo através do mestre de cerimônias, Marcel Julian, que, mote de picadeiro, marca o carrinho de mão, recheado de casinhas coloridas, como stábile intervencionado à cena.
A partir deste (des)ato, A República de Itararés vai apresentando as personagens do circo dos Desvalidos e (des)construindo propostas e reiterando à velha fórmula do sucesso de Itararé. A República dos Desvalidos continua.
A facilitação da cena aos atores e atrizes fica na zona da natural aptidão de cada um, para repetir a lição de cor e, por vezes, trazer pequena distância dos componentes já úteis nas versões anteriores. Talvez, o afobado da estreia não tenha dado vazão à estreita práxis arimataniana de dissecar os textos à compreensão das falas e discursos, de propósitos, e dourar melhor a pílula na apreensão do efeito placebo que curasse os velhos hábitos e cacoetes das composições dos intérpretes.
Mas está, o elenco, em franca capacidade de tornar o sucesso em sucesso às novas gerações, que ainda não tiveram a oportuna chance de ver os tipos, criados na carpintaria zeafonsiana e expiados pelo público na montagem dirigida por Arimantan Martins. Tira riso, quer abrir fronteiras refletoras dos Itararés do Brasil e define-se como + um espetáculo ao repertório das montagens locais que deve ganhar o mundo.
Sobre a atuação do elenco, que atomiza o espetáculo, cada um reflexiona um particular eixo paradigmático aos sintagmas expressos à linguística dramática construída às falas individuais em interação às sociais volatizadas.
Lari Sales, como um furacão, afoba-se a sua própria sorte de atriz forte que é. Desenvolta nas variações de cena, por vezes, sugere + apelo ao riso e desloca a essência do humor, já contido no textual, que talvez ficasse + risível na economia e dosagem dos is com pingos nuançados ao riso, entretenimento, apelo e dramático explorados em equilíbrio (in)constante.
O solilóquio, em que desfia memórias da vida amorosa, feito ao proscênio, em aproximação do público e integração de identidade, dá-lhe uma calmaria na ebulição que carrega em todo o restante do melodrama. O ponto de passe, em que sincretiza a fé popular afrodescendente, também reverbera outro momento legal.
No + o corpo e as falas parecem aprisionar-se na fórmula de só provocar riso em detrimento do "real" drama discutido. Atriz tarimbada, mantém-se, ainda assim, energética e elétrica com Creta e outras aldeias do drama primordial.
Vera Leite, a já azeitada mãe do drama, está sempre muito à vontade. Inflexões, articulações e atonações dramáticas se aliam à tônica da personagem que se faz uterina verbal em maturidade compensada pela técnica de atuar. Quando canta, destaca zelo ao ouvido do público e amplia a drama a voz musical. Canta porque o instante do canto existe e revela o dramático porque se permite e o texto corrobora a esse fim. É garantia de + acerto.
Bid Lima, depois de longa temporada fora dos palcos, faz um retorno não comprometedor. Advinda da montagem de 2006, a atriz reintegra seu jeito particular de articular falas e histrionizar vozes sociais, com certo cuidado de dizer o texto e valorizar o riso que possa ser consentido ao melodramático. Sua entrada, interativada ao público, viaja pelo corte da quarta parede, viés diretor, e deixa a plateia + dentro da intimidade dos Desvalidos.
Como está para atuar e não para opera soap, embora envolvida em Comédia Musical, faz-se obra quando interpreta e canta quando solicitada. As orientações vocais, de preparação de voz, por Gislene Danielle, aparecem sem destoar do farol da direção musical. Garante seu tempo de atriz ao drama e à comédia.
Edithe Rosa, a grande expectativa a essa nova montagem, não esteve em seu melhor dia. Talvez, intimidada pela responsabilidade histórica que a Beata Marta Carvalho representou no passado, esteve Edithe muito aquém da atriz que já conquistou na cidade.
Não desviou-se da dramaturgia proposta, nem traiu a própria história, só não curtiu toda a vívida tensão que Marta Carvalho impõe à cena. Quando conseguir estreitar a relação intrínseca atriz/personagem e conluir, na recepção integral, com os colegas de cena, não terá pra quem quer. Sabe da capacidade que tem, falta atomizar a construção da personagem.
Eliomar Vaz Filho fica no marcado tempo de amadurecer com a personagem que sempre desempenhou. Quase datada, a personagem do pai da família, que desembolsa, não salta da comodidade, trunca performance bonachona e compõe um bêbado que inspira novidade a quem vê a peça pela primeira vez.
Fábio Costa, também intérprete da mesma entonação, quase às vezes de personagem fixa da comèdie del'arte, dilata as falas e, por vezes, em acelerado ritmo que pueriliza o discurso. Os cacoetes contumazes estão por todo o tempo de encenar de sua (des)construção da personagem. Sua presença de palco, para dramaturgia que supervalorizaria o circo, se repete a gagues de corpo falante, disfarçadas de novidade, e texto de quase pregoeiro eletrônico, não conseguem efetuar atração ao riso.
Marcel Julian parece ser atraído pelo roldão premeditado no drama. Com características de composição distanciada, varia bem sobre o mesmo tema e posiciona-se como o bom partner à narrativa que propicia + desvelo dramatúrgico as personagens femininas. Com presença e carisma natural, soma no conjunto da encenação.
Comédia Musical, A República dos Desvalidos consegue belos momentos de passagem das falas às músicas que reforçam o enredo. O Coro, das canções, ao melodrama alça a peça a boa audição musical, mesmo com dificuldades que possam apresentar alguns intérpretes, enquanto cantem. Grosso modo, é bom de ouvir a encenação musicada que partitura o drama.
O espetáculo vai ganhando um crescente para culminar com a música que fecha a dramaturgia e reúne alguns estilos musicais, em "pou pourri" quente. Para a estreia do último dia 30 de janeiro, um representante da plateia subiu à cena em momento que deveria ser o "ápice" do elenco. O homem meteu-se na cena, talvez estimulado pelas invisíveis vestais baquianas do teatro popular primordial. Não foi muito bem aceito na cena, pareceu desestabilizar o elenco.
E o que poderia ser festejo, virou constrangimento. A um tempo, um ator deu, propositadamente, um trombão no homem, quase a deslocá-lo para fora do palco. Mas Baco, anarquista, estava com o povo que permaneceu em cena até o fim do musical, mesmo com a irritabilidade indisfarçável de uma atriz e a tentativa, muito educada, de outra em conduzi-lo à plateia.
Um espetáculo "alienígena" no espetáculo. Com o discurso de valorização do popular, parte do elenco não aceitou muito bem o popular intrusivo na grande cena aberta de final da peça. Pareceu atrapalhar o brilho da última tacada.
O que poderia ser a antropofagia vital, tão apregoada pela metodologia renovadora zecelsomartiniana, foi desprezada e o povo foi forçosamente vomitado, sem ter passado pela barriga do bicho devorador das personagens insurgidas do meio da ágora. Agora, se a proposta de A República dos Desvalidos discute o povo e o vomita sem o devorar, nada decifra e talvez andeje na contramão do discurso.
A carnavalização é inclusiva, antropofágica, para beijoqueiros e outros "doidos" e "loucos" identitários da polis. E, Gentileza gera gentileza. E teatro é de participação proativa e integradora. A cena do ator, maledicente em mente, que tromba com o povo, reinstalou a quarta parede e desdisse que "Itararé, quero te amar..."
O espetáculo empolgante e efusivo pode estimular novas participações identitárias do povo da plateia. O elenco, talvez, precise estar preparado a novas estratégias de sobrevivência e solidariedade cênica, até para deixar o povo entrar e desviar-se, não do povo, sim do ator envaidecido pela grande cena de brilho particular.
Despejar o povo seria convergir a teatro morto.
Analise perfeita sábio guru....
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