a burguesia quer estar rica
por maneco nascimento
"A burguesia fede/A burguesia quer ficar rica/Enquanto houver burguesia/Não vai haver poesia//A burguesia não tem charme nem é discreta/Com suas perucas de cabelos de boneca/A burguesia quer ser sócia do Country/A burguesia quer ir a New York fazer compras (...) Mas também existe o bom burguês/Que vive do seu trabalho honestamente/Mas este quer construir um país/E não abandoná-lo com uma pasta de dólares/O bom burguês é como o operário/É o médico que cobra menos pra quem não tem/E se interessa por seu povo/Em seres humanos vivendo como bichos/Tentando te enforcar na janela do carro/No sinal, no sinal/No sinal, no sinal (...)" (Burguesia: Cazuza, George Israel, Ezequiel Neves)
O disco Burguesia, de 1989, em que Cazuza metia o pau, mesmo sendo representante desse estrato social que expunha à expiação pública, de forma estética, artística, crítica, auto crítica e mordendo sem assoprar. Lá se vão 24 anos desde que a canção estourou nas paradas de sucesso e reiterou o quão grande compositor só Cazuza poderia ser, com sua irreverência, anarquia profética e licenças poéticas sambossarock'in high society alternative.
E os dias de novas tecnologias trazem os novíssimos fluxos comunicacionais e + distração e ademais solidão. Sem estar com o outro, mas + estar e não ser da natureza humana. Octavio Paz escreveu há + de trinta anos sobre poesia, modernidade, comportamento e quebra de contacto com a natureza e com seus semelhantes e disse a contexto que aqui se abre à essa reflexão:
"O homem moderno serve-se da técnica como seu antepassado das fórmulas mágicas, sem que aquela, ademais, lhe abra porta alguma. Ao contrário, fecha-lhe toda possibilidade de contacto com a natureza e com seus semelhantes: a natureza converteu-se num complexo sistema de relações causais no qual as qualidades desaparecem e se transformam em puras quantidades; e seus semelhantes deixaram de ser pessoas e são utensílios, instrumentos. A relação do homem com a natureza e com seu próximo não é essencialmente diversa da que mantém com seu automóvel, seu telefone ou sua máquina de escrever (...)" (O arco e a lira. Octávio Paz, pag. 270)
Ainda se referenciava a velha máquina de datilografar, hoje atualizada ao computador, tablet, telemóvel, diríamos. Hoje a natureza humana quer estar + na mídia e evade-se à própria privacidade. Estar na moda, na festa, na tevê, no grupo ostentação e, sem ser, na ausência do ser, está +, mas está + só.
E, como vaticinava o poeta, a burguesia quer ficar no front de espera de ser +, é serva da própria condição de estar burguesa e enquanto houver burguesia, segundo Cazuza, não vai haver poesia. Paz aponta que "o poeta moderno não tem lugar na sociedade porque efetivamente não é 'ninguém'. Isso não é uma metáfora: a poesia não existe para a burguesia nem para as massas contemporâneas. O exercício da poesia pode ser uma distração ou uma enfermidade, nunca uma profissão: o poeta não trabalha nem produz. Por isso os poemas não valem nada: não são produtos suscetíveis de intercâmbio mercantil. O esforço que se gasta em sua criação não pode ser reduzido ao valor trabalho. A circulação comercial é a forma mais ativa e total de intercâmbio que nossa sociedade conhece e a única que produz valor. Como a poesia não é algo que possa ingressar no intercâmbio de bens mercantis, não é realmente um valor. E se não é um valor, não tem existência real dentro do nosso mundo (...)" (O arco e a lira. Octavio Paz, pag. 296)
Salvo as críticas de auto reflexão de Cazuza e as palavras de Octavio que definem poesia e poeta como bens de pequeno valor de mercado e negócios, as sociedades estão em constante mutação, as leituras direcionadas e acadêmicas blindaram a arte de compor poemas e poesia e dentro do universo do "control c" e "control v" ainda há vida inteligente que se detenha também, e ainda, nas velhas tradições de leituras.
O livro, o papel, caminham paralelo às redes sociais e seus encantos interfluxionais de comunicar. Mesmo em país de pequenos leitores e agora de emergentes e efeméride da comunicação virtual e pragmática, o poeta e a poesia mantêm-se vivos. Porque é da natureza humana sobreviver às novidades e contar que naquele tempo era assim e hoje é assaz.
No capítulo, Os Signos em Rotação, Octavio Paz acrescenta "(...) não ha poesia sem sociedade, mas a maneira de ser social da poesia é contraditória: afirma e nega simultaneamente a fala, que é palavra social; não há sociedade sem poesia, mas a sociedade nunca pode se realizar como poesia, nunca é poética. Às vezes os dois termos aspiram a se desvincular. Não podem. Uma sociedade sem poesia careceria de linguagem: todos diriam a mesma coisa ou ninguém falaria, sociedade transumana em que todos seriam um ou cada um seria um todo auto-suficiente. Uma poesia sem sociedade seria um poema sem autor, sem leitor e, a rigor, sem palavras. Condenados a uma perpétua conjunção que se resolve em instantânea discórdia, os dois termos buscam uma conversão mútua: poetizar a vida social, socializar a palavra poética. Transformação da sociedade em comunidade criadora, em poema vivo; e do poema em vida social, em imagem encarnada." (idem. pag. 310)
Salvo o fundo filosófico de vinculação poética da sociedade com a poesia e desta com as falas sociais, a poesia está para o homem (genérico), como este para a poesia. Alguns com + leituras e + licenças, outros com menores aptidões ao feito poético.
Mas nas imagens arbitradas, cores, linguísticas experimentadas, transversalizadas, gestos simples, corpos que sempre dizem alguma coisa, a poesia se salva, salva e de assalto rompe o asfalto e nos brinda com A Flor e o Ócio, mesmo com a burguesia serva da própria condição de estar burguesa.
Ser ou não ser, eis o livre arbítrio da condição humana. E ainda assim sobra poesia.
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