quinta-feira, 21 de junho de 2018

Das pérolas

do rosário do Harém...
por maneco nascimento

Em algum lugar do passado, em uma das melhores experiências de Teatro viajor, nos encontros dos em extinção Festivais da Cena Brasileira, ouvi da boca de um mago dos palcos nacionais: "Ari, tu é diabólico!"

Não havia, na expressão ditada, ao testemunho de uma plateia de artistas de um Festival Brasileiro de Teatro[ConFeNaTa], nenhuma repulsa, ou crítica negativa, mas um elogio na estética da semântica ampliada e fora dos crimes e pecados remoídos pelo remorso das igrejas e dos subterfúgios de anátema, ou estigma nebuloso,  a decaídos em desgraça "divina".

O autor do elogio, Celso Nunes. O elogiado, Arimatan Martins, à época na defesa de "O Auto do Lampião no Além", de Gomes Campos, montagem que percorreu Festivais e marcou espécie, enquanto vida útil. De lá pra cá, uma vintena de anos desde que esse elogioso gracejo, vindo de um ótimo diretor de Teatro, definiu talento, ousadia, esperteza, "feeling" dramático e uma inteligência a serviço da cena que aspira viver.

No último dia 15 de junho, no Parque da Cidadania, a partir das 18h30, dentro do FaRRa-Festival de Arte na Rua, em dia de abertura do evento, assistiu-se ao espetáculo "Duplo Molière", dramaturgia de tradição e ruptura na reinvenção da arte arimataniana. 


Um roteiro dramatúrgico, criado a partir da história de Vida e Obra sempre-viva do "vulgo" Molière, deu um Duplo, o perspicaz e atraente Teatro de encenação aristotélico-brechtiniano "Duplo Molière", este de feitura criativa assinado por Arimatan Martins, o + novo autor de textos-encenação, o Ari, para os amigos.

O Dramaturgo Arimatan imerge na História de Vida e Dramaturgia, de Jean-Baptiste Poquelin, bem chamado Molière[ o Ator, Poeta e Dramaturgo francês, considerado um dos maiores e melhores escritores da língua francesa e literatura universal ], e transversaliza Este e Estas ao contemporâneo de Teatro, para fórmula hareniana, em dialogismos com personagens do Autor de Teatro poderoso do século 17 da era cristã.

Não poderia dar outra coisa: Teatro vivo! Da alegria, vicissitude, inteligência, humor venal e crítica social dos costumes, jamais em desuso, de Molière, a trupe do Harém vê-se facilitada à pena de Martins e, "Brincando encima daquilo"[In Memoriam da Grande Marília Pêra], constroem riso, humor, carpintaria naturalista e distanciada para a cena peculiar e garantida da escrita do Harém.

Teatro da desconstrução, apresenta Fernando Freitas[impagável], Francisco de Castro[garantido em técnica, projeção e inflexões escolásticas], Francisco Pellé[dono do seu Teatro ao mito de Procópios, Otelos, dálias e improvisos da Comédia Brasileira naturalista], Marcel Julian[sem salto alto, mas em eficiente Salto do Cavalo Cobridor(Assis Brasil)], Luciano Brandão[o falso descuidado à forma desdenhosa de ser presente na cena] e, finalmente, o + novo entre os "Monstros do Teatro Piauiense"[alcunha de Fernando Freitas], ele, Kaio César[que já vem dizendo a que veio, só não viu quem fingiu que perdeu os primeiros segundos do início de espetáculos que ele tem por mostrar].

Seis Personagens em Busca de Um Autor[para nunca esquecer Pirandello] encontram Arimatan e desvelam seus gracejos, em intercurso com o Autor e Obra homenageados. "Duplo Molière", na linguagem de Teatro de Rua, ou para a Rua, apresenta o simples limpo, complexo, dramático que dinamiza ideia, contextos, memórias sociais e História de humanidades de Autor e Personagens bifurcados.

A desconstrução dramática de carpintaria arimataniana serve-se a roteiro direto, pragmático e de moderna arquitetura que revela, sem esconder o matiz do arco-íris que leva ao pote de ouro, bronze ou prata, a partir da recepção + desarmada, ou reticente em ver Teatro, mas sempre um jogo para Medalhas.

A música incidental, ao vivo, instrumentada por Fagão, pontua o ponteiro horário que enreda medievalismo e pós-modernidade na linguagem da cena. Os figurinos, vide Bid Lima, demarcam a segunda pele, das personagens dos intérpretes, à das personagens que intervencionam ao olhar do público.

Enchem de cor que remetem ao Maior Espetáculo da Terra, a arquétipo de comèdie-del'arte, aos bufões dos carroções que cortam fronteiras e chegam aonde o povo está, em diálogo de estética que medievalize interações contemporâneas.

O Corpo que fala no corpus da Cia. Teatral encontra ecos além do mito das cavernas[Platão], com + ordem e tônus equilibrado em Fernando Freitas[ator, bailarino e coreógrafo que atira-se ao abismo em voo definido]; em Marcel Julian[que detém movimentos numa economia premeditada, de ator e método pela observação e experimentação]; Kaio César[que parece trazer consigo um corpo neutro que se enche de tônus e intenções para medidas trabalhados].

Língua, linguagens e falas na forma e natureza, garantem o Teatro do Harém e, faz deste o sucesso de + de 30 anos de história e memórias da cena brasileira, posta à arena de famintos olhares, na busca de gracejos e identidade dramática.

Em Luciano Brandão[que varia entre um cobrador PRL a la Pierre Baiano e outro mais defendido, quando compõe o Advogado empertigado]; Francisco de Castro[marca ainda pontuações de essências anteriores, embora domine texto, atenções e intenções diferenciais às construções das suas personagens] e Francisco Pellé[em corpo falante bonachão à histrionia peculiar de marca e relevo que o faz o ator de suas boas Estrelas].

Não há descrédito, há + Teatro de propósitos que varia na linguística e na assinatura do Grupo que, salvo quem torce o nariz, fica na contabilidade de construir Teatro como só o Harém está para a Cena Piauís, assim como a nova cena brasileira está para a diversidade criativa continente adentro, país afora.

Da dramaturgia de interações estético de composição cenográfica[Emanuel de Andrade], os elementos e contrarregras entrecruzam-se e vão cosendo eficazmente o jogo de signos. A carroça do cortejo do Morto, um veículo medieval atualizado; os núcleos de constrói/desconstrói personagens e cenas, um desarrumado estético sem sujeiras, numa falsa pretensão de caos, mas potência[para ficar em Nietzsche].

O veste, troca, compõe, descompõe, refaz, repara, aplica pedagogia de narrativa da montagem da cena e defende as buscas do fora e dentro, do descortinado e total rompimento de paredes dramáticas, pois Teatro Popular de Rua.

O desenho de palco e maneirismo de demonstrar a didática dramática de contar Molière é força que atomiza, no simples, brincar de verdades de mentiras cênicas e não perder a fila que evolui de Molière a Arimatan, em circular da invenção da pólvora, ou da máxima de Lavoisier, ou ainda de repetirmos o diferente no igual, pois marca da humanidade a contextos.

É Harém. É Teatro. Tá vivo e Brook sabe disso. É "Duplo Moliere" e o invisível visibilizado aos átomos, em matéria dramática, é arte, lúdico, ciência e estética, linguagem, tema e tempo de Teatro, logo esfinge decifrada.

Meu duplo vê no Harém o "Duplo Molìere". Tenho dito.

fotos/imagem: (reprodução/divulgação/page Francisco de Castro)

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Ébano Rei

nas vezes de Pés Inchados
por maneco nascimento

Junho trouxe à pauta do Theatro 4 de Setembro, dentro do Projeto Terças da Casa, edição Terça Teatro um espetáculo da práxis escolástica institucional de Teatro Universitário. O Grupo de Teatro da UesPi demonstrou sua leitura dramática de clássico, reinventado, no último dia 05 de junho, e teve a sua assistência um público delicado, mas concentrado em ver e sentir o ato dramático para a saga do Príncipe de pés inchados.

Em terra de predomínio da cor negra, dessa cor brasileira que tanto nos faz tão bem, o elenco também ganha esse matiz de etnia brasis e, quando o assunto gira em torno de humanidade e reflexões sobre natureza humana, não há cor, nem berço, há ato, artistas, intérpretes, talentos e uma dose de inteligência que reinventa-se ao sabor de bem ser e estar Teatro.

O Grupo de Teatro da UesPi trouxe, ao palco do Theatro 4 de Setembro, a dramaturgia de cena facilitada por Moisés Chaves, para as vezes de "Pés Inchados". Uma leitura de Teatro Piauís para Obra original clássica "Édipo Rei", de Sófocles. Assim como Moçambique[leia-se FestLuso trouxe a Teresina Piauí Brasil uma versão crioula de Hamlet/Shakespeare], Teresina nos brindou com a égide de obra sofocliana com derme negra, quase 100%.

Já feliz com o que vi. Sem escamoteio, nem de pequenas verdades, ou grandes mentiras às formas, a direção usando de seu dado lançado à sorte usufruiu da cor da terra e fê-la brilhar em texto, originalmente grego, para gregos se troianos, e deu-lhe nossa pele.

Ao nosso ocidente ressignificado, "Pés Inchados" apresenta não só a cor brasileira, mas o sangue pagão reatualizado para ritos, rituais, passagens e práxis dramáticas felizes.


Ao primeiro Édipo Rei piauiense, em caráter profissionalizante, Kaio César, com ascendência civil para dois imperadores, apresenta um Príncipe de Tebas das Sete Portas com uma dignidade de atuação, movimentos econômicos e drama curtido na escola de distanciamento apreendido, que vem renovar  arte na casa dos Vieira.

No pulo do guapo, Kaio engradece a personagem, enquanto César secunda a assinatura de bem assemelhar os monólogos internos e visibilizar efeitos dramáticos de ator em franco método de afinação da profissão. Um Édipo a não perder-se de vista, porque inspirado no Teatro fugidio dos vícios do fácil, em logro de não só gerar espanto e admiração da recepção, como afeição dramática.

A Rainha Jocasta, na voz e atenção de Janá Silva, é uma majestade empertigada, elegante, contextualizada na graça e corpo piauiês e garante a empatia que requer do/a intérprete à atenção da plateia.

Salvo uma ligeira agonia dramática transferida à personagem, na busca de mais gás e sintonia, que desliza na tensão afobada, em desvio da técnica de atriz e método, e envia plural ao advérbio e pronome "onde". Pareceria inadequação pequena, caso não fosse cena e Teatro, que ciência de razão e sensibilidade.

Mais calma e audição direcionada dariam o tempo de todas as palavras, intenções a atrações dramáticas que qualquer interpretação exige. Mas veste uma Mãe-adúltera e incestuosa que dignifica todo o esforço cênico de gerar a falha trágica e catarse prevista pela esfinge.

O príncipe Creonte, irmão da Rainha, atualizado por Cairo Brunno, não nega a corrida do ouro que o ator implementou na busca da profissionalização e rendimento do exercício do exercício. Em Elegbara, de Toni Edson, com direção de Arimateia Bispo/CoTJoc, já demonstrava uma inquieta luz rumo ao romper do túnel.

Em "Pés Inchados" traz seu natural e elegância à cena e uma certa naturalidade que, quando mais afiada na aplicação de economia e contenção, seria para escola dinasfatiana. Fala bem, anda regular na cena e o corpo concentra drama. Não desfia o rolo de Ariadne, desliza o fio à saída do labirinto.

Moisés Chaves não foge da tradição e ruptura e seu Coro é ponte segura ao Corifeu, que transita entre deuses e mortais e enamora-se com a persona em dialogismo equilibrado, concentração e sincronia feito melopeia antecipando incontinenti os passos da tragédia. Uma Voz social equilibra ação dramática e revela cuidado de contar uma das histórias profanas mais visitadas e prender a atenção do público.

Os figurinos ganham os contornos mais figurativos, embora emblemáticos. E, a primeira pele de todo o elenco está melhor representada, pois epiderme do corpo do corpus atuante. Têm, para efeitos de contextualização dramática, aliados aos contrarregras/adereços de composição, uma força que mais nos atrai para o texto, a ação, a aura do drama e o desenredo da trama urdida pela força trágica.

A iluminação sangue contorna toda a efígie dramática e equilibra o desenho cenográfico para gaiolas ensartadas
 às paredes, céus das cabeças das personagens, a lembrar das vidas aprisionadas ao destino irrelutável e cosido pela mora que costura as sobrevivências trágicas clássicas. Sígnicas aos conflitos que geracionam o ápice, as gaiolas talvez insertem um céu de prisões pululando às cabeças das personagens ao inconsciente de fugas do destino.

A música incidental viva e composta à expensa da ação dramática conflui a + energia atomizada. O quinto que elementa atrativos sinestésicos ao enredo do decifra-me ou devoro-te. Por falar em Esfinge, a opção da direção de aplicar na personagem-palavra-chave pompas e circunstâncias ritualísticas, que imergem nas raizes afrodescendentes em transversal com os ritos pagãos originais, dão um "up", já de entrada, na apresentação da detentora do poder de definir quem vive e quem morre.

Há um desfile de intérpretes que incorporam, sem baixar santo, o corpus que sangra o trágico, como a que se destaca do Coro e, Corifeu, dialoga com as personagens principais; o que marca a cena como Tirésias, do Templo de Delfos, e o Criado/pastor que guarda o segredo de condenação da família mergulhada na violência, crime, incesto e castigo derramados na casa Laio-Jocasta-Édipo.

É bonito de ver um texto trágico, de milênios, revitalizado ao discurso e voz de ocidente do lado de cá da linha do equador, com seus meandros de vontade de compor Teatro e contar dramas existenciais, de muito, mas de muito antes de Jean Paul Sartre e, bem depois do macaco perder o excesso de pelo e aprender a linguagem dos talheres à mesa.

O pequeno Homem à estatura e Grande Otelo, alcunha do talento brasileiro da grande Cena, já marcou todas as gerações antes de Ébano Rei da cepa piauís, agora eis que um Nobre desponta e marca a nova cena da cidade, devagarinho, sem a pressa de holofotes.

Ave, Kaio César!