a ser, não-ser, voltar a Ser
por maneco nascimento
“(...) a criação poética é uma operação durante a qual o
poeta tira ou extrai de seu íntimo certas palavras. Ou, utilizando a hipótese
contrária, do fundo do poeta, em momentos privilegiados, brotam as palavras. No
entanto, não existe tal fundo; o homem não é uma coisa, e menos ainda uma coisa
estática, imóvel, em cujas profundidades jazem estrelas e serpentes, joias e
animais viscosos. Flecha esticada, sempre rasgando o ar, sempre adiante de si,
precipitando-se mais além de si mesmo, disparado, exalado, o homem avança sem
cessar e cai, e a cada passo é outro e ele mesmo. A ‘outridade’ está no próprio
homem (...)” (Paz, Otavio. O Arco e a lira. Trad. de Olga Savary. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1982. 368p. [Coleção Logos]. pag. 215)
(trilhas poéticas a Salgados, Maranhões e mapas da tribo/divulgação)
“Volto para casa trotando/nas horas/ao abrigo/insanável/de
minhas/vidas havidas. Retorno/soletrando os trilhos,/face ao enclave do
sonho,/face à lira do crepúsculo.//Existo ante um eu/que come alfaces/e um
outro que disfarça/entre relâmpagos.//E sigo à revelia/deste que migra/ao ontem
de amanhã,/como se me abrissem/uma lavoura de espelhos.//Cidades anônimas
gritam/em minha carne; avenidas/secretas guardam meus sapatos;/de tantos que me
tornei,/já não me retorno ao mesmo.” ((Maranhão, Salgado, 1953 - o mapa da tribo.
[1. ed.] Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. il. 103 pgs.)
Em "Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais", Poema 1., d’O Mapa da Tribo, desse querido e caçador de
palavras e que à beira do abismo, debruça-se sobre a criação que há em si e nos
outros contidos que contêm sua práxis criativa do homem que não passa duas
vezes pela mesma água do rio, como defende Heráclito de Éfeso. E, Salgado
Maranhão, é assim que assina esse maranhense/piauiense de coração, alma,
territórios de pés molhados nas águas, barreiros, aguapés e córregos das
memórias afetivas que plantam o poeta e brotam o senhor da própria poesia, flecha esticada.
(o sal da nossa terra e de geografias poéticas: S. Maranhão/divulgação)
“(...) Assim, a imagem reproduz o momento da percepção e
força o leitor a suscitar dentro de si o objeto um dia percebido. O verso, a
frase-ritmo, evoca, ressuscita, desperta, recria. Ou, com dizia Machado: não
representa, apresenta. Recria, revive nossa experiência do real (...)” (O
Arco e a lira. pag. 132)
Ainda de (Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais), poema 1., Maranhão apresenta um segundo poema, em
prosa, ou prosa poética (mapeados em ordem alfabética) para este e os outros
seis que abrem O Mapa da Tribo. Uma coda, complementaridade, ou nada a ser
explicado, um contínuo poético que não seja só poesia e obra dadas, mas isto e
aquilo que se faz poeta, poema e seu criador debruçado sobre o eu e os outros
das tribos familiares experimentadas.
“(...) a) e o menino cresceu comendo vésperas, paginando o
pergaminho do vento. O sonho a bater na trave, o olhar regido pelos testículos.
Tanto adeus sem partidas; tanta terra dura nos calcanhares tecendo o tempo ao
revés: o rebento (sem nome) feito para estoque, para perder-se entre o seria e o já era tempo.” [o
mapa da tribo: Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais, a), pg. 18]
Os mundos em mundo do poeta e suas tribos, o passado
presente futuro, futuro presentemente presente em nosotros leitores e filiados
à recepção poética do criador. “O poeta fala das coisas que são suas e de seu
mundo, mesmo quando nos fala de outros mundos: (...) O poeta não escapa à
história, inclusive quando a nega ou a ignora. Suas experiências mais secretas
ou pessoais se transformam em palavras sociais, históricas. Ao mesmo tempo, e
com essas mesmas palavras, o poeta diz outra coisa: revela o homem (...) esse
movimento que o lança sem cessar para diante, conquistando novos territórios
que, mal são tocados, se tornam cinza, num renascer e remorrer e renascer
contínuos (...) para que as palavras nos falem dessa ‘outra coisa’ de que todo
poema fala é necessário que também nos falem disto e daquilo (...) ” (O
Arco e a lira. pag. 230)
“2. O sertão mordeu meus calcanhares. O ser-/tão é um coiote
vestido/de súplica (sem que eu visse, abriu/cáries em minhas lembranças);/eis
como sangra o poema/vestido/de ausentes;/eis minhas unhas de barro/e
servidão.//Em meu corpo/o verão plantou cigarras,/ergueu palavras sobre
ruínas/(e essa hipérbole para além do havido.)/Por onde passo/até as pedras
uivam.///b) (Já era lúdico o latejar da luz nos olhos ante a infalível espera
da manhã servil. E o ruminar da loucura ilustrada pelo silêncio. Já era férrea
a fé cavando a pedra. E a porta aberta ao nunca. Nessa entranha de enigmas uma
voz ousou lapidar meu delírio. Junto às armas vencidas e a semente dos mortos.
Junto ao cio desta nuvem que ri.” [o mapa da tribo: Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais, b), pag. 20]
O poeta, homem e bicho, confunde-se com a coisificação, da
natureza das geografias afetivas, feita súplicas (im)pertinentes à natureza
humana regurgitada nas memórias reviradas e concretizadas nas imagens
reatualizadas, de fé que cava pedra a silêncios e invisibilidade e entranha
enigmas a retorno do salto mortal. “A palavra poética jamais é completamente
deste mundo: sempre nos leva mais além, a outras terras, a outros céus, a
outras verdades (...) A imagem nunca quer dizer isto ou aquilo. Sucede
justamente o contrário, como já se viu: a imagem diz isto e aquilo ao mesmo
tempo. E mais ainda: isto é aquilo.” (O Arco e a lira. pag. 231)
Poeta e ciência criativa, entre o mergulho ao primordial
criador e a razão e sensibilidade dinamizados pelo feito e efeito da palavra
imagética e dual. “(...) E digressão rupestre/para saudade e sanfona; um/talvez
Éden/perdido/no improvável/ (...) derrapante do que sou/a origem me socorre.//É
no arder da inocência/que se morre (...) Chamarei de ardil o oráculo que
transmigra o fogo e o deserto. Chamarei de chuva o esquivo raio da memória. É
possível colher uma flor no cio das facas. Porque é pétala o sangue que remove
a pedra; porque sanguínea é a sombra da palavra (...)” [o mapa da tribo: Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais, 3./c). pags. 21
e 22]
A volta de Salgado à terra que deseja reencontrar, idas e
vindas a remoer o calor das memórias, um talvez intertextual com as horas
dobalinas, remoídas no calor das tardes. Ser e o não-ser dobram-se em mesma
busca e buscam resposta do encontro com o outro.
“4. Ainda sei domar a treva –/ essa nênia/composta para os
olhos./Porque pertenço/à seita dos que têm/cítara nos dentes./Eu que sou da
terra/cortada pelo não-ser, (...) Apenas a rua dos loucos/me alista/em seus
anônimos./E ainda que eu invente/o amanhecer,/é da treva/o que se atreve./Sou o
que adestra/as palavras/e o desassossego -/ante a verdade servida com
sangue,/ante o tempo/em que a dor bate à porta./Daqui,/destas siglas do
efêmero,/tento iludir o perigo,/mas os lobos não comem sílabas.” [o
mapa da tribo: Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais, 4., pags. 23 e 24]
O poeta Maranhão que viu “(...) o corvo de olhos negros, sob
um sol a diesel, com a fome tatuada em seu nome (...)”, Ele é este e aquele que
revira “(...) a tempestade procurando a superfície de Deus.)” (o
mapa da tribo: Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais. pag. 25) e revoga todos os contrários e revela
(in)contidas palavras que falam da vida, das vozes e do mundo a caos e
vaguidade em derredor de nós.
“O homem imanta o mundo. Por ele e para ele, todos os seres
e objetos que o rodeiam se impregnam de sentido: têm um nome. Tudo aponta para
o homem (...) O homem é temporalidade e mudança, e a ‘outridade’ constitui sua
própria maneira de ser. O homem se realiza ou se completa quando se torna
outro. Ao se tornar outro, se recupera, reconquista seu ser original, anterior
à queda ou despencar no mundo, anterior à cisão em eu e ‘outro’ (...) E porque
pode ser outro é um ente de palavras.” (O Arco e a lira. pag. 219)
Sendo um e outro, Salgado Maranhão “Vem do crivo dos pés no
barro esse abril ancestral cingido à memória; e vem da usina de espantos (...)
tangido pelo mistério (...)” e recolhido ao avesso, vem “rompendo as brenhas e
o esquecimento: o risco no lugar do rastro (...)”, deságua em seu“ (...) cais
entre mapas e rotas perdidas.” (o mapa da tribo: Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais. pag. 26)
Poeta, cruzador de palavras, guerreiro das terras santas e de
profanadas igrejas da reinvenção da palavra, esse é o poeta e criador e se
instala no homem que “(...) já é tudo o que deseja ser: rocha, mulher, ave, os
outros homens e os outros seres. É imagem, núpcias dos contrários, poema
dizendo-se a si mesmos. É, enfim, a imagem do homem encarnando no homem (...) A
inspiração é lançar-se para ser, mas também e sobretudo é recordar e voltar a
ser. Voltar ao Ser.” (O Arco e a lira. pag. 221)
Nas bem traçadas linhas geográficas desse Mapa da Tribo,
Salgado constrói-se em “(...) uma existência de palavras (...)” e dói-lhe
“(...) um coração tatuado de ausência (...)”. Poeta, é de toda imagem “(Era
aceito lamber a facão a face alheia (...) Mesmo depois da pátria que me veste a
moderno. Mesmo após o Goethe à luz da lamparina.)” (o mapa da tribo: Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais. pags. 28 e 29)
Como diz o poeta, “Depois que se chega ao tudo, é preciso
voltar a nado.” E realiza a diáspora de geografias, sem a diáspora das memórias
e empreende Os Outros Eus para “Terra sem nome” em dez movimentos in versos de
(re)versos poéticos. Em Coração no
Lábio, tempo a “Domínios”; “Templo”; “Ladrante”; “Órbita”; “Nuvem”; Incêndios”;
“Potro”; Mulher”; “Artéria”; “Pérgula”; “Léria”; “Córrego” e “Visagem” em viragens
e presença do sexual.
Um lobo de ray-ban uiva à amada, em elegia sutil às terras
do sensual conquistado e entradas atomizadas de paixão e prazeres tomados a si
em conluio à outra. “(...) Vem lava incendida que poliniza as mulheres; vem
chuva secreta! (...)” (Templo, p. 50); “Ouço ladrar uma ausência que me
rasteja: loba a rosnar com a pata dos brutos (...) Mas grito na carne uma acesa
sanha de ser. Um raio de pernas ruivas rasgou meu silêncio, (...)” (Ladrante,
p. 51 e 52); “(...) Busco a porta de um colo em que me deite, e, discípulo do
relento, vendo uma língua para deleite.” (Órbita, p. 53); “Tu és a pétala que
atravessa a chuva e o jardim de espadas. E carregas no ventre a luz do grão
(...) Uma nuvem de sândalo se aninha em teus álamos; uma nuvem que arrebata os
fortes e os fracos como eu." (Nuvem, p. 54)
Ainda arremata em Incêndios, página 55, “(...) Vem, mandala de sete faces, e rasga a
noite que te nega os hormônios (...) Por isso, a gramática das flores
transborda em teu sexo. Por isso é que te induz o mistério das coisas vivas.
Vem para que eu te abra os gomos e te provoque incêndios.”
Ousadas atrações ataviam frenesi “Quando o
fogo atávico implodir tuas saias de vento e tua carne adubar minha lança de pedra,
será doce morrer, será como arder entre flores de sândalo (...) Agora serei
incontido como a fome dos potros e meu desejo é um lobo em teu rastro.” (Potro,
p. 56)
“Depilo tuas vestes íntimas obcecado pelo mergulho em teu
luminoso abismo (...) há em mim uma urgência atávica: febril, como urgência da
vida feroz, como o decreto da morte. E mergulho amparado em minha certeza
inútil; a mesma do meu pai e de todos os meus ancestres; a mesma dos que
morreram e morrerão em ti – alegremente! – desde Adão.” (Mulher, p. 57)
E como é doce viver e morrer de prazeres calientes, o poeta
doa o que tem “Receba estes frutos ávidos que inventei para te louvar. Como se
não fosses o que és, fêmea, mas uma pérola acesa, uma flor de ônix (...) com o
clamor de nossas áfricas abertas (...) Não há como secar esse rio de magma, não
há como conter essa artéria que o desejo adoça.” (Artéria, p. 58)
“Sequestrarei teus labirintos antes que o medo esconda teus
frutos; (...) serei hóspede dos teus gomos acesos (...) E serei marisco em teus
mares convulsos; e serei a pérgula onde os pássaros anunciarão teus jardins
(...)” (Pérgula, p. 59) “Antes fosse a léria onírica que te acende o lábio,
antes o teu húmus – porque és flor do meu barro e o sol queimou teu nome em
minha carne (...) Perdi séculos antes de ti.” (Léria, p. 60)
Em “Córrego”, pag. 61, carrega sensações e declara “Sou
somente o que carrega o instinto, um córrego que desata enigmas (...) Cresceram
flores em minhas pupilas – donde assisto a noite a incendiar-te. Um raio insone
mora em tuas vestes.” E, em “Visagem”, pag. 62, “(...) Com as palavras ainda
posso apertar seus ombros e guardar o silêncio que oculta sua pérola (...)
Talvez eu possa esconder-me sob essa aragem de ausência e o sabre que anuncia
as cicatrizes (...)”.
Completam o Mapa, poemas capitulados como Por Aqui Agora, nomeados em Litanias, de 1 a 10. Da Origem, as memórias ancestres e afetivos
recordares de passados feitos presente. “Origem” e “Origem 2”; “Torrão”, a
terra natal; “O Retorno”; “Paisagem” e “Paisagem 2”; “Trans”; “ A Febre
Verbal”; “Labor”.
Dos últimos poemas inscritos na geografia d’O Mapa da Tribo,
vê-se em “Dos Renas(Seres)” marcas para obra que dá título ao livro. “O Mapa da
Tribo”, o poema, intertextualiza raízes
e memórias da pele gentia e negra e excerta “Guesa Errante” de Souzândrade.
Fecham o livro “Pária 2” e, “Eis o que me enreda: o ofício de tecer nuvens. De
pedra.” (Ofício, pag. 91)
(da pedra a música, lira atomizada/divulgação)
Salgado Maranhão é 7 Letras feito palavras 70 vezes 7, para
perdões, memórias, história revisitada e licenças de profecias e poesias de
lavor a contemporâneos sinais do passado presentificado em O Mapa da Tribo. Em
vais e voltas ao Ser é pedra cinzelada pela pena em dinâmica construção
poética.
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