por maneco nascimento
"(...) a água, antes sossegada, começou a se agitar levemente. Aos poucos essa agitação foi crescendo em intensidade e diminuindo em área, até se concentrar num pequeno círculo (...) o restante da água ao redor continuava a deslizar mansamente, enquanto naquele ponto parecia se iniciar agora um processo de fervura, com um crescente borbulhar, cujas bolhas que nasciam e estouravam eram cada vez mais maiores e mais
sonoras (...) no instante seguinte foi uma incrível explosão, tão poderosa que arremessou diretamente na margem do rio algo do tamanho de um homem - ou muito maior (...) Na margem, contorcendo-se na areia e produzindo um som semelhante a um gemido abafado de dor, uma criatura de aparência inumana parecia investir num esforço desesperado de rastejar de volta até a água - de onde acabava de ser violentamente expelida - mas não tinha forças o suficiente." (Crispim e a Sétima Virgem. pag. 18)
(capa arte da obra de Eduardo Prazeres/image face E. Prazeres)
Um algo parido das águas abre uma das chaves mistério e suspense que vão encaminhar a narrativa de Eduardo Prazeres para um dos + conhecidos e oralizados mitos da construção social urbana da cidade de Teresina, a lenda do Cabeça de Cuia.
Numa licença poética de romance, a falha trágica, catarse, retorno à cena de crimes e castigo e redenção, através de reconhecimento de vidas passadas, regressões, seitas, religiões, misticismo e prospectado passado, de duzentos anos corridos, dão mote a Crispim e a Sétima Virgem.
A tragédia urbana, feito lenda, minada dos nascedouros ribeirinhos dos rios Parnaíba e Poti que lambem Teresina, tem origens em fins de século XVIII e chega ao 21 com a reorientação do destino falho do filho de pescador, através da inventividade criativa e poder autoral de recriar histórias orais, advindas do inventário popular, abrindo viés de reflexão sobre personagem condenada à maldição materna.
Eduardo Prazeres acerta e dignifica "seu" Crispim, enquanto desliza pelas tragédias tradicionais, de origens clássicas, e traz à tona novidades e sopro de vida diferente ao monstro devorador de moças virgens às margens das águas que lavaram a mesopotâmica cidade verde e guardam memórias de criadores e criaturas de vidas contadas, sociologias e antropologias primordiais que permeiam o imaterial surgimento das gentes e sua construção social.
Pincelado em intertextuais de mitologia e tragédia gregas revalorizadas, a falha trágica em que foi envolvido o personagem chave da narrativa piauiense transversaliza com Hipólito (tragédia de Eurípedes, em 428 a.C.) que, envolto num misto de acaso, erros, comunicação truncada e reverso de paixões violentas, acaba vítima da ingenuidade e escolhas em que a mora (destino), escrita por deuses, se estabelece e dá rito de trágico e redenção.
O metamorfo, lançado fora das profundezas do rio, sem memória, corre contra o tempo para cumprir sua missão, karma, e livrar-se da culpa encrustada na alma por dois séculos. Na atualidade, busca, em flashs de memória e ajuda de novos amigos, encontrar solução a seu problema que ainda não sabe como será conquistada.
Por outro lado, um grupo de magos representantes de uma seita tradicional, vinda dos Açores, chega ao Brasil Piauí Teresina, com intenção de impedir que o destino trágico se concretize, ou se repita o ritual de "serial killer", monstro devorador de coração de virgens. Com setas especiais, construídas por velho sábio, nos Açores, que deverão ser entregues ao Arqueiro, o escolhido que mora em Teresina, os magos têm prazo para que sejam cravadas as armas no monstro e quebrar de vez a maldição.
A morte incidental da mãe do jovem pescador e a maldição da madrinha profetizada ao mancebo, já quebra um paradigma original da lenda e abre olhar de solidariedade do autor àquele que sempre foi visto como matricida.
O Crispim, que viaja no tempo, está inserido em confronto que envolve sua madrinha e a própria mãe que, na atualidade da narrativa, estão reencarnadas na forma de homens, o mestre da seita e o Arqueiro, respectivamente.
As revelações da trama vão sendo construídas e distribuídas a seu tempo e, no ápice da repetição do trágico revisitado, descobre-se que todos, de alguma forma, foram enredados e devem alguma função para resolver o problema do monstro criado por um erro do destino.
Mitologia e lenda, misticismos, fervor religioso, paixões, perdas de amor de almas iguais, reencarnação e regressão, intolerância religiosa e cumprimento de destinos revelam mudanças estratégicas e diferentes das que poderiam ter sido sugeridas pelo autor ao leitor, como pistas ou despistas do que realmente planejou à narrativa, e dão nova história a amantes e outrem envolvidos no percurso do romance.
A lenda original se altera e, como diz Prazeres "Crispim e a Sétima Virgem é uma adaptação livre da versão original, introduzindo novos fatos e personagens e trazendo a história para os nossos dias". Dá salvaguarda ao Crispim e o mergulha em nova possibilidade de ver-se como personagem, nem tão monstro, nem de todo homem, falho com qualquer outro, mas sujeito a sofrer perdão e ser redimido das falhas a que foi submetido, ao acaso trágico.
(Eduardo Prazeres interage em escolas com sua obra/image face E. Prazeres)
O inteligente enredo, para fantásticos e pragmáticos passeios pela trama, definem Prazeres como bom autor que mergulhou em pesquisas e tempo de maturar sua ideia para não incorrer na ingenuidade de autor de primeira viagem.
Crispim e a Sétima Virgem é de leitura envolvente, prende a recepção e dá conta do recado, sem perder o caráter romântico, mas com exercício de distanciamento para refletir o homem e sua origem, condicionamentos e determinismos sociais, o ato falho presente em qualquer um que pode acionar destino trágico a outrem.
Sai na medida e diz ao Crispim Pescador que, pelo menos na ficção, ele está absolvido da culpa e pode levar uma vida sonhada e recuperar o tempo perdido, quando esteve preso na amargura que o enleou na tragédia dos enganos. Mesmo que seja em romance sorrateiro, do mito, monstro e metamorfo, com chances de felicidade temporária.
História de pescador, como sobrevivência do amor jurado à luz do luar , em redenção e cura da própria existência e felicidades "perdidas".
Muito obrigado pelo lindo artigo, Maneco.
ResponderExcluirpor nada. sua literatura completa o autor
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