quinta-feira, 7 de maio de 2015

Rosário poético

memórias de afeto proféticas
por maneco nascimento

"Com a mesma decisão do pensamento filosófico a poesia tenta fundar a palavra poética no próprio homem. O poeta não vê em suas imagens a revelação de um poder estranho. Diversamente das sagradas escrituras, a escritura poética é a revelação de si que o homem faz a si (...) Movido pela necessidade de fundar sua atividade em princípios que a filosofia lhe recusa e a teologia só lhe concede em parte, o poeta desdobra-se em crítico." (Paz, Octavio. O arco e a lira. trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. 370 p. [Coleção Logos] : O Verbo Desencarnado, pag. 285)

Como bom brasileiro, da média, também leio quando posso e, particularmente, para não esquecer. Não como os argentinos que detêm uma excelente média de leitores, nosotros brasileiros lemos, alguns com muito + afinidade e afeição, outros com alguma chama de prática e, uma boa maioria leu na escola, por diverso da obrigação e exercício da metalinguística aplicada. Mas alfabetizado, deslizou nalgum momento pelos encantos da leitura.

Sempre que possível declino sobre um livro a curiosidade, crítica de apreensão e uma prática interessada em consumir uma boa leitura. Noutro dia chegou-me às mãos um livro. Uma amiga de minha irmã emprestou-lhe a obra e minha irmã recomendou-me a leitura que a encantou. Até aquela data, final de abril de 2015, ainda não havia tomado conhecimento do livro encantador.

"Cacos de Mim", de Cineas Santos, com ilustrações de Jota A. Livro de 2012, fez-se prova em mim de que não seria eu um bom leitor, haja vista só três anos depois é que detive o privilégio de me deleitar com um rosário poético de memórias de afeto proféticas e de encanto rebuscado de prosa poética. E, quebrando o paradigma do autor que se apresenta como em atenção "aos meus três leitores", mergulhei em sua matéria-prima que, segundo o autor, é a de sempre:
(arte visual de Cacos de Mim, para prosa poética e tintas equilibradas/reprodução)

"crônicas velhas, antigas e remotas publicadas na imprensa teresinense nos últimos vinte anos. Resgatei-as do festim das traças, cupins e baratas. Para torná-las palatáveis, incumbi o Jota A de vesti-las de novidades. Graças ao talento desse compulsivo caça prêmios, aqui estão, prontas para uma sobrevida. 'Viver vicia'." (o autor. Porteira. pag.9 IN Cacos de Mim)

Não digo que entraria no clube de seus três leitores, mas a leitura prazerosa é de garimpar a arte do artista, autor de peças raras como, "O amor bate à porta e tudo é festa. O amor bate a porta e nada resta.", quando o assunto é poesia e, "Cacos de Mim", quando o tempo é de prosa poética, deslizada na simplicidade de escritura e no sintético aplicado de ótima construção textual.

"A missão do poeta consiste em ser a voz desse movimento que diz 'Não' a Deus e a seus hierarcas e 'Sim" aos homens (...) Restabelecer a palavra original, missão do poeta, equivale a restabelecer a religião original, anterior aos dogmas da Igreja e dos Estados (...) A missão do poeta é restabelecer a palavra original, desviada pelos sacerdotes e pelos filósofos (...)". (Idem. pags. 288, 289) 

"Cacos de Mim" vem de mansinho, com textos humorados, memoráveis, de identidade e pertencimento e, sobremaneira, intertextual no melhor esteio da produção literária nacional de aproximação e empoderamento, mantendo o homem como focus antropológico.

E quem sabe do que leu identifica o sobrevivente herói famélico de Graciliano; os loucos, rotos e proféticos de Euclides e o homem de sabedoria simples de Manoel, não o Bandeira que também se faz presente na identidade do urbano, mas o de Barros, com suas licenças de verdades e valores da terra, homem e propriedade de vida dos comuns rurais e de campos de sobreviver, para não deixar de fora o nosso também Dobal.

Os modernos se confundem, se  completam e não negam os românticos, muito menos o romantismo alemão. "A poesia romântica não é só uma filosofia universal progressista. Seu fim não consiste apenas em reunir todas as diversas formas de poesia e restabelecer a comunicação entre poesia, filosofia e retórica. Também deve misturar e fundir poesia e prosa, inspiração e crítica, poesia natural e poesia artificial, vivificar e socializar a poesia, tornar poética a vida e a sociedade, poetizar o espirito, encher e saturar as formas artísticas de uma substância própria e diversa e animar o todo com a ironia." (Friedrich Schlegel ao definir o programa da revista Athenäum IN Paz, Octavio. O arco e a lira. trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. 370 p. [Coleção Logos] : O Verbo Desencarnado, pag. 291)

Santos vai ganhando o leitor com sua feitura de bem escrever, funde poesia e prosa e estabelece prosa poética em que socializa poesia em vida e sociedade e argamassa o espírito de lirismo moderno e anima o todo criativo de ironia refinada. "Cacos de Mim" se faz retalhos de nós alinhavados com tessitura de luzes e cor por fios que entremeiam temas naturais às linhas, entre as linhas, para além das linhas de proximidades e atenção com o outro contido no eu poético.

E assim as crônicas velhas, antigas  e remotas, como define o autor, vão se "adonando" do leitor pela Poeira da infância, Estaleiro de ausências, Inventário de errâncias, Ecos da chapada e n'As Despesas de envelhecer.

Para Poeira da infância, vida plantada "Nos cafundós do Caracol, longe de quase tudo, o chapadão infestado de alho-bravo e cupinzeiros era um convite a não ficar (...) Sem consultar a ninguém, decidiu que ali fincaria mourões, plantaria filhos, regaria a terra magra com o suor do corpo. E assim se fez. Passagem para lugar nenhum, cotovelo do mundo, só o vento e as cigarras maculavam o silêncio que, de tão constante, calejava os ouvidos (...) operou-se ali milagre o da transubstanciação: a gleba transmutou-se e engravidou-se de vida e beleza (...) Em pouco tempo, Campo Formoso tornou-se gleba próspera com fartura de mantimentos e semoventes (...)" (Campo Formoso, pag. 13 e 14); 

e ainda "Um dia, cansado da preguiça dos bundas-vermelhas, montou num velho pangaré, cavalgou durante um dia inteiro, até chegar a um baixio de nome estranho: Lagoa dos Tubis. Achou a terra conforme e decidiu que ali plantaria mourões e semearia filhos. Por iniciativa de dona Purcina, o lugar foi rebatizado com o nome poético de Campo Formoso. Seu Liberato plantou-se ali e praticamente se esqueceu do mundo. " (O descanso do trabalhador, pag. 77).

E se a prosa e poesia se fundem para intertextualizar quem bem melhor cantou o homem e sua aurora de sobreviver, o velho Graça vem se achegando nas vozes e falas sociais do poeta e prosador Cineas e trazem aquele sabor de memórias e de chuvas amorosas, como Santos bem lembra o querido Dobal. 

"trabalhava a terra e campeava nuvens magras na vastidão do azul (...) A canga do trabalho os unia. Da soma de desejos tão díspares fez-se uma família sertaneja, pobre, trabalhadora, honesta." (Campo Formoso, pag. 15); "homem de aspirações rasas, aquela pouca sabença era o suficiente. Sertanejo simples, queria filhos capazes de tirar da terra o que a terra lhes pudesse dar. Com um pouco de chuva e muito suor, a terra nos dava tudo (...) Consumíamos nossa 'ração de vida' sem maiores queixas." (A descoberta da maldade, pags. 32, 33);

"Ali, o solo, as casas, as árvores, a água, o céu, tudo é ocre." (Paisagem árida com moça na janela, pag. 65); "Morava no sertão do Caracol, comia o que encontrasse pela frente, inclusive rabudo, um ratão travestido de preá; bebia, quando encontrava, água de barreiro; trabalhava com meu pai nos eitos, cuidava dos animais, caçava (para comer) pássaros e bichos miúdos; campeava jegas para fins impublicáveis e, para não fugir à regra, levava surras homéricas de dona Purcina." (Tudo & Nada, pag. 68)

 "Seu Liberato era um camponês simples cujas aspirações não excediam aos limites do seu roçado (...) Sua vida era balizada pelas chuvas. Sabia buscar-lhe os sinais em toda parte: na barra do dia, na floração dos mandacarus, na agitação silenciosa das formigas, na posição do ninho do joão-bobo... O mais eram suor e labuta." (O descanso do trabalhador, pag. 76);

"Fui um menino sertanejo, e vida de menino sertanejo, pelo menos no meu tempo, era quase sinônimo de carências. Na verdade, nos faltava praticamente tudo: alimentação adequada, água tratada, médico, dentista, escola, livro, brinquedo..." (Das coisas que me fazem falta, pag. 111); "Nos olhos, a poeira da estrada e o espanto diante do novo. No corpo inteiro, o medo latejante." (Tão Teresina que dói, pag. 117);

"No sertão onde nasci, apenas duas datas tinham, efetivamente, algum significado: a sexta-feira da paixão e o primeiro do ano. Na sexta-feira grande, não se podia fazer quase nada. Não se tomava banho, não se tirava a barba, não se ordenhavam as vacas, não se comia carne, não se falava alto. Os mais devotos passavam o dia em completo jejum (...) Já no dia primeiro, podia-se quase tudo, inclusive percorrer a pé duas ou três léguas à caça de um forró (...)" (Um jeito novo de iniciar o ano, pag. 145);

"Terra pobre, gente simples, mas extremamente hospitaleira (...) O padre era um típico pároco do sertão: rotundo, comilão, bonachão, ostentando na caratonha bovina o resignado ar dos mansos (...) Entre as fruteiras, havia um autêntico umbuzeiro do sertão: atarracado, tortuoso, com galharia impenetrável. Lembrei-me daquela descrição antológica de Euclides da Cunha. Naquele umbuzeiro empoleiravam-se as galinhas para dormir." (Das vezes em que salvei Cristo, pag. 167, 168); 

"(...) em minha aldeia, faltava quase tudo, inclusive o indispensável (...) Nosso universo vocabular compunha-se de um punhado de expressões, girando em torno de três substantivos: sol, chuva, trabalho. Das poucas expressões que conhecíamos, a mais significativa, pelo que encerrava de expectativas, era: 'está bonito pra chover'. A mais triste de todas, 'o inverno acabou'. O mais era aquele silêncio carregado de significados que o velho Graça traduziu tão bem em Vidas Secas." (Lições de vida, pags. 173, 174);

Campear memórias afetivas e revigorar velhas emoções encontram, em Cineas, o menino, o homem, o sertanejo que aprendeu as lições de pedras, para não esquecer Salgado Maranhão, e garimpou os riscos da poesia em prosa profética. Lembrar tempos de céus, terras de viver, o azul da gleba entre o ermo e o próspero. "(...) trabalhava a terra e campeava nuvens magras na vastidão do azul." (Campo Formoso, pag. 15); "Salvo engano, possuía a alma blue: o azul o atraía e fascinava. (Caçador de mim, pag. 86);

De louco e profeta todo poeta tem um pouco, então salvas as memórias de loucos, errantes e profetas populares que povoaram as vidas de todo sertanejo. "Atendia pelo nome de Bertim, era um dos loucos do plantel de dona Purcina. Idade inescrutável, um metro e meio de altura, barriguinha proeminente e os olhos roídos pelo tracoma. É a primeira figura humana de que me lembro na vida." (Das coisas que não se esquecem - 1, pag. 17)

"Ele chegou como chega a noite: sem pressa, sem ruído. Nada trazia a não ser o sujo das lonjuras grudado nas retinas. impossível adivinhar-lhe a idade, mas o algodão encardido da carapinha denunciava muitas luas. Quando lhe perguntaram de onde vinha, respondeu, sem muita convicção: 'De muito longe', o que tanto podia significar de qualquer lugar como de lugar nenhum. Pediu água e farinha. Acomodou-se numa nesga de sombra, comeu, bebeu e dormiu como um felino saciado. Mal o avistei, pressenti nele um anjo. O nome se confirmou: Edison do Ministério de Nossa Senhora. Não era um anjo de luz, desses que anunciam boas novas; era um anjo negro, trôpego, um tantinho estúrdio; um anjo decaído (...) Dona Purcina, 'a matriarca dos loucos', o acolheu como a um filho, e ele foi ficando. A casa ficou um pouco menor, mas muito mais alegre." (E o anjo se foi, pag. 52, 53);

"Novembro chegou. E com ele, as primeiras chuvas. E com as chuvas, o Zé Sanfoneiro. Passageiro do vento, nada conduzia, não se sabe de onde vinha, não tinha destino certo nem prazo para chegar (...) Falava pouco e tocava o tempo inteiro. Curiosamente, não tinha sanfona, melhor dizendo, tinha uma sanfona imaginária. As costelas funcionavam como o teclado, que percorria com a mão direita, ágil, nervosa. Com a mão esquerda, fazia o movimento de abrir e fechar o fole do instrumento que só ele via. Com a boca emitia uma infinidade de sons (...) Numa manhã de abril, sem mais nem menos, o Zé Sanfoneiro levantou-se, sacudiu a poeira da roupa e, sem se despedir de ninguém, partiu tocando 'A volta da asa branca'. Foi se afastando, afastando até ser engolido pelo azul..." (Das coisas que não se esquecem - 3, pags. 58, 59, 60); 

"(...) José de Ribamar Mendes Vieira, parnaibano, 49 anos, desquitado, pai de três filhos, carpinteiro, desempregado, residente em Campinas (SP) há 31 anos. Com a maior naturalidade, o carpinteiro me explicou que está apenas 'cumprindo a sua missão'. Segundo ele, há alguns meses, começou a ouvir umas vozes estranhas, mesmo quando acordado. Comunicou o fato à mãe, com quem mora numa casinha alugada, e tomou a decisão de partir (...) 'Quanto mais longe eu puder levar a palavra de Deus, melhor' (...) Curiosamente, aquele carpinteiro de pele curtida de sol não se enquadra na moldura de pregador tradicional: fala muito pouco (...)" (A missão de José, pags. 162, 163) 

Como bom poeta, a sua prosa também envia sinais às fantasias e mulheres, que o artista não é de ferro, é de poesia. "(...) e três bailarinas-acrobatas, apresentadas como 'as famosas estrelas de Amambay'. Do ponto de vista artístico, as moças tinham pouco a oferecer, mas os trajes - maiôs cintilantes - literalmente eletrizavam a plateia, constituída, em sua maioria, de homens. Para quem, como eu, jamais vira uma mulher de maiô, o número que apresentavam era pouco menos que um alumbramento." (As estrelas do Amambay, pag. 30);

"(...) mas ao dez anos de idade, eu já andava perdidamente apaixonado (encegueirado, diria dona Purcina) por uma fulaninha, feita de sonsice, astúcia e maldade. Réplica piorada de Capitu, tinha ônix nos olhos e gelo no coração (...) Quanto à zinha, como uma gata escaldada, soverteu-se no breu da noite... O que veio depois? Muitas outras mortes... Mas, como diria Quintana, 'Nada melhor do que morrer de amor e continuar respirando'". (Da verdadeira arte de morrer de amor, pag. 41);

"Eu teria uns doze anos de idade, não mais que isso. Para variar, andava alucinadamente apaixonado por uma baianinha que, vista de frente, era uma boneca de porcelana; de lado, a haste de um lírio prestes a romper-se. Tudo nela reclamava cuidados especiais: parecia feita de pluma e sonho." (Cacos de mim, pag. 44); "(...) De repente, sem qualquer razão, levantei a cabeça, abri os olhos e creio ter visto o mais belo quadro de que me lembro: uma mulher jovem, acintosamente bela, recostada numa janela sorrindo (...) Portanto, aquela mulher, indiferente ao rugir da vida, sorria para mim (...) bebi-lhe o sorriso e, comungado, baixei a vista. Quando voltei a procurá-la, meus olhos só encontraram a moldura pobre da janela vazia." (Paisagem árida com moça na janela, pag. 66);

"Num átimo, lembrei-me de um momento mágico vivido por mim na longínqua adolescência, numa tarde como aquela. Numa praça deserta, encontrei uma amiguinha e, 'navalhados de saudades' vagamos a esmo pelas ruas das cidade até que uma chuva mansa nos envolvesse com o generoso manto da cumplicidade..." (De pecadilhos e pecados, pag. 71, 72); "(...) Em matéria de mulher, preferia todas, mas tinha um sonho recorrente: fazer amor com uma ruiva, ao pino do dia, numa praia deserta (...)" (Caçador de mim, pag 86); 

"Cenários maravilhoso, música envolvente, garotões sarados e garotas apetitosas...Sem querer ofender as mulheres ( por quem 'vivo, padeço e morro'), nunca se inventou embalagem mais adequada para qualquer produto - de pneu de caminhão a cerveja ordinária - do que mulher bonita. Isso é que é uma versatilidade; o mais é arenga." (Das coisas que não mais farei, pags. 97, 98);

"Aos dez anos de idade, decidi fugir com a trupe do 'Gran-Circo Transamericano' para me tornar acrobata, trapezista, engolidor de fogo ou simples limpador de bosta de elefante. Qualquer função serviria, uma vez que a minha intenção era ficar por perto das três bailarinas-acrobatas, 'as famosas estrelas do Amambay' com as quais aprendi a pecar contra a castidade, em noites de insônia e febre (...)" (Demasiadamente patético, 99, 100);

Das assumições das diferenças, contraposição ao senso comum das estéticas de espelho social, estar naturalmente no grupo da feiura, sem constrangimentos. "É escusado afirmar que havia, como ainda há, doenças incuráveis: feiura, preguiça, sem-vergonhice, dor-de-corno..." (Das enfermidades que ainda não tive, pags. 36, 37); "Avesso à violência, não caçava, não pescava, não maltratava animais. Era feio, mas de uma feiura branda, não acintosa. Parecia feito de paciência, disposição e saúde." (O descanso do trabalhador, pag.77);

"Falemos, pois, do menino velho que, numa esplendente manhã de maio do ano de 65, foi despejado na Praça Saraiva onde ninguém o esperava. Falemos do sujo das estradas grudado nas retinas (...) Mas deixemos o menino velho em suas deambulações e falemos, ao sabor das lembranças (...) Esqueçamos de vez, o menino velho com sua arenga interminável." (História de mil e um amores, 122, 123)

"É possível que nem se deem conta da presença daqueles moleques vadios que, nas tardes de chumbo de Teresina, dão cambalhotas para ninguém. Às vezes, paro e fico espiando as estripulias daqueles garotos pobres que, indiferentes ao rugido furioso dos automóveis, apenas brincam como deveriam brincar todas as crianças da cidade: ao ar livre, sem o olho vigilante dos pais." (Cambalhotas pra ninguém, pag. 129);

Para a cor e a etnia, o poeta registra, "Éramos quase todos do mesmo tope e todos da mesma cor: marrom-descaso." (Das coisas que não se esquecem - 2, pag. 38); "e, num segundo, vi-me cercado por um enxame de garotos, quase todos do mesmo tope; todos eles da mesma cor: marrom-descaso." ( Lição de casa, pag. 49);

"Depois de um abraço generoso, meu irmão de cor e crença passava a mão em minha carapinha recoberta de algodão e perguntava: É tapioca? A resposta saía de bate-pronto: É giz, nego burro! E ríamos como dois moleques vadios." (Da relatividade de tudo, 55, 56); "Quando o conheci, há 50 anos, não passava de um neguinho cabeçudo que atendia pelo nome de Raimundo Nonato dos Santos." (Ausências que doem, 80);

"Conta-se que certo jogador brasileiro, negro, perdão, afrodescendente, estava atuando no Japão onde gozava de imenso prestígio (...) Lá pelas tantas, o repórter perguntou: É verdade que, no Brasil, existe preconceito racial? (...) É verdade, sim. Quando eu era negro, sofri isso na própria pele (...) 'Acho que todos os negros sofrem. Eu, que sou branco, sofro com tamanha ignorância' (...) Quando um branco se declara negro, sua atitude é louvada e aplaudida (...) A recíproca não é verdadeira: se um negro se declara branco, será levado ao pelourinho. Estranho, não?" (Negro de alma branca, pags. 93, 94); 

"Em defesa da minha negritude, só posso dizer que, num país em que todos perseguem o branqueamento, eu fiz a viagem na contramão. Explico: quando me registraram num cartório do Caracol (...) eu era branco, de olhos claros e cabelos castanhos. Quando me alistei no Exército (reservista de terceira, com muita honra), promoveram-me a pardo, de olhos castanhos e cabelos crespos. Hoje às portas da senectude, não passo de um preto velho de olhos baços e carapinha branca... Decididamente, mesmo não sendo 'um negro direito', estou mais próximo de mim." (Negro de alma branca, pag. 95);

"Na remota década de 80, escrevi um arremedo de poema denominado 'Coisa de Negro'. Texto curto, incisivo, debochado (...) Não sujei na entrada/ Não sujei pela vida/ Mas só pra aborrecer/ Só pra ver feder/ Vou sujar na saída. O Fifi, hoje doutor Feliciano Bezerra, musicou o texto e o inscreveu num festival de música estudantil. O trem ficou bonito e meu parceiro abiscoitou o primeiro prêmio. Na noite da premiação (...) ouvi o seguinte comentário: 'Cara, justamente o Cineas, que nem é negro direito!' (...) coube a mim apenas a revelação de que eu não passava de um quase negro." (Errática trajetória de um advérbio, 180).

E das mães que é a melhor invenção de Deus, reúne elogios e lições de vida e maternidade, "(...) era um simples feixe de gravetos de marmeleiro, coisa sem a menor serventia. Sem perguntar o preço, d. Purcina comprou-o. Seu Liberato, que a tudo assistira (...) interpelou-a, com certa rispidez: - Tá faltando lenha na casa? - Não, respondeu a minha velha (...) - Então, por que diabo você comprou essa porcaria? (...) Hoje esse garoto passa vendendo lenha; se ninguém comprar, amanhã passará pedindo esmolas; se ninguém der, depois de amanhã, passará furtando o que encontrar pela frente." (Lição de casa, pag. 50);

"Se lhe diziam que determinada tarefa era impossível de se realizar, cortava a conversa com a pergunta: Você já tentou? Não perdia tempo tentando convencer os indecisos. Simplesmente metia a mão na massa e fazia." (O outono da matriarca, 74); "Era exata, precisa, certeira como um tiro de lazarina. Tinha um extraordinário senso de humor: quando adoecia, afirmava: Aprendi com meu pai uma receita para não morrer: basta não parar de gemer. Ninguém morre enquanto estiver gemendo." (Ausências que doem, 80);

"(...) em matéria de vício, o único que me permiti, por curtíssimo espaço de tempo, foi o de comer terra, um barato baratíssimo! Com um purgante de calomelano e doze lapadas com um cipó de fedegoso, dona Purcina livrou-me daquele inocente vício e me imunizou contra os que ainda estavam por vir." (Das coisas que ainda não fiz, 158).

 E para mulheres solidárias e saudades, escreve respectivamente, "(...) por que não consultam as mulheres? Quando falo mulheres, não estou pensando nas Zélias, Dorotheas, Yedas, Terezas da vida. Penso nas mulheres anônimas, simples donas de casa que, sem alarde, diariamente repetem o milagre que imortalizaria o Nazareno: multiplicam pães. Só essas mulheres, por intuição e sofrimento, conhecem o verdadeiro sentido das palavras equidade, justiça, probidade, solidariedade. Nosotros, como diria o livreiro Nobre, o máximo que conseguimos é esvaziá-las de qualquer significado." (Lição de casa, 51);

"Quanto a mim, só posso dizer que já não sei quantos quilômetros separam São Raimundo Nonato de Teresina. A cidade parece distanciar-me de mim à medida que envelheço. Há distâncias que os velocímetros dos automóveis não registram. A distância entre a perda e a saudade, por exemplo, só pode ser medida com régua de tristeza. E isso dói." (Da relatividade de tudo, 57);

Há ainda tempo para galos, migrantes, flores e um infindável perfume de letras que sinergizam beleza e avançam sinestesia de apreensão de estéticas depuradas aos riscos das palavras conspiradas na prosa poética de "Cacos de Mim".
(o escritor, poeta, prosador, professor e apresentador de programa de TV, C. Santos/foto Yala Sena) De mim, muito prazer deleitado na leitura concluída e, esse quase tratado de amor incondicional pela poesia moderna e lírica contemporânea e seus magos da escritura. Macktub!

Nenhum comentário:

Postar um comentário