“Cisco” de memórias
por maneco nascimento
História Cultural e História Oral, duas vertentes que transversalizam métodos e práticas de revisão do comportamento social das civilidades. O fato é que os novos profissionais da história têm se detido nessa ampliação dos dados sócio-históricos que, se não contrapõem os oficiais, abrem viés para o diverso de leituras e compreensão da vida em sociedades.
(arte capa Railson Santana/acervo edufpi)
“Sentimentos e ressentimentos em cidades brasileiras”, organizado por Francisco Alcides do Nascimento e editado pela EDUFPI/Editora Ética - 2010, justifica, na apresentação, a orientação do trabalho na pauta de algumas expressões empregadas pelos pesquisadores do campo da História Cultural e na História do Presente.
Ganchos de pesquisa tomam corpo a partir de expressões-mote, como sentimentos, ressentimentos, memória, narrativa, história e literatura. A coletânea de artigos, de pesquisadores que atuam em universidades brasileiras e têm sede de observação e confronto histórico as cidades em que residem, cria fôlego à nova história apreendida.
Temáticas garimpadas compõem essa obra indispensável a pesquisadores, estudantes e curiosos. “Entre Manoel de Barros e Mia Couto: produção de uma escuta sensível para a pesquisa em História”, artigo de Ana Cristina Meneses de Sousa Brandim, doutoranda em História (UFPE) e de Shara Jane Holanda Costa Adad, doutora em Educação (UFCE), é um dos assuntos recolhidos.
O trabalho reflete a linha fronteiriça, cada vez + observada pela nova história, entre história, ficção e literatura que “(...) embora a narrativa da verdade seja o objetivo do historiador, esta verdade é construída discursivamente, implicada de sentidos, tanto pela transitoriedade do tempo como pela textura aliquot das palavras, ou seja, a verdade é ela própria um discurso histórico (...)”.
Shakespeare e Miguel de Cervantes, originais em adaptar narrativas históricas ao conteúdo cultural literário contextual, sob o viés da ficção rica de denúncia crítico-social, bem como Machado de Assis, na apropriação de eventos históricos como testemunhos à literatura produzida, andejaram como muitos outros pela memória e história refletidas.
No olhar à dimensão da arte, as autoras refletem que o pesquisador/historiador não pode perder a dimensão da poesia, da vida, pois viver é criar, ir além de si mesmo, em pleno viés da superação e apontam Nietzsche: “somente quem tem o caos, dentro de si, pode dar a luz a uma estrela bailarina”. De Manoel de Barros indicam percepções, peculiaridades constituintes da nossa condição histórica.
De Mia Couto nos revelam, em investigação da literatura do autor, a apreensão de que “ (...) o todo é apenas uma vertigem, a profundidade está nas sutilezas, nos detalhes, nas dimensões que cortam a superfície em micro-camadas (...) objetos, sujeitos e acontecimentos são sentidos construídos não somente pelas narrativas que tentam localizá-los, identificá-los, mas também pela capacidade de sensibilidade do pesquisador (...)".
A sensibilidade para aquilo que pesquise, ou escreva vir a ser “ (...) mais que um simples amontoado de dados (...)”, serve ao Outro e o subterrâneo prospectado não seria como uma “ (...) dimensão desprezível, mas como etapa importante para passar para outras experiências, sentidos e entendimentos”.
Finalizam na ênfase de que as desterritorialidades das palavras e dos sentidos, além de poéticos, fundam outros sentimentos ao entendimento de mundo construtivo de escutas + humanas fora do perfil de pesquisadores arrogantes e donos da certeza.
Antonio Clarindo Barbosa de Souza, professor de História da Universidade Federal de Campina Grande na Paraíba e doutor em História (UFPE) aborda “Vivências, Violências e Ressentimentos: os pobres na cidade de Campina Grande (1945-1965)", em que o objeto de pesquisa principal é reflexão sobre as formas de exclusão social dos populares nas cidades. Os “desviantes”, apontados como sendo os que não aderissem ao projeto de desenvolvimento capitalista pensado para a cidade e para o país.
O detido estudo levanta como uma das hipóteses centrais a de que para certos setores da sociedade, a cidade de Campina Grande sempre foi excludente, e que esta impossibilidade de “todos” participarem da cultura e da riqueza local gerava alguns conflitos.
Com a fase de declínio econômico, final da década de 50, “(...) estes conflitos e tensões vão aparecer de forma mais aguda, passando a exigir medidas corretivas, e até coercitivas por parte das autoridades constituídas”.
Os esforços das elites econômicas e letradas e os discursos veiculados em finais dos anos de 1950 até meados dos anos de 1960 se impunham no sentido de separação dos dois grupos sociais aos espaços da cidade, quer ao trabalho, quer às horas de diversão, marcar ainda que pelo discurso os “territórios” de cada um, aponta o pesquisador.
Assim, a assepsia dos centros urbanos, como o ocorrido na cidade em estudo, passa paulatinamente a ser regra de conduta “oficial” à preservação da “(...) honra e o direito à propriedade dos mais afortunados”. Conceitos de doenças, infecção, obscenidade, promiscuidade e desordem, discurso estigmatizante relacionado aos pobres, os desprestigiadores da cidade e sua modernidade.
Exclusão praticada a partir de retórica asséptica aplicada aos “desviantes”, ou facilitação de entendimento a uma sensível forma de enxergar novas versões das cidades é matriz renovada de orientação histórica que absorve as dobras, “ciscos” de dados sociais por vezes aquietados nos silêncios e subterrâneos da história oficial.
Esses temas são só dois dos artigos publicados em “Sentimentos e ressentimentos em cidades brasileiras”, organizado pelo professor-doutor da UFPI, Francisco Alcides do Nascimento. Leitura obrigatória a qualquer bom observador das cidades livres.
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