quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Memórias reviradas

afetividades expiadas
por maneco nascimento.

Transgressão feito cena. Estéticas experimentadas à prova de fogo e alegria de revisitação das memórias afetivas, que nunca se alteram com a idade, só adquirem as dobras do tempo e os contornos das lembranças conservadas.

Cena antropofágica, linguagem do caos transversal no tempo de compor narrativas dramáticas, contar historinhas, apresentar a partitura individual de intérpretes criadores e render loas ao teatro com toda alegria, vigor, juventude transversada e técnica de mapear dramaturgia que aponta para o homem, em sua hora de contar sobre si mesmo.

Os sapatos que deixei pelo caminho", argumento de Lourimar Vieira; texto de Cícero Gilmar Lopes; direção de Marcos Felipe e um elenco despojado, concentrado, anárquico, em juventude dramática espelhada, transgressor dos paradigmas da zona de conforto.

(a prostituta kosmic blues/fotos Marcos Montelo)

Camila Sandes, que abre o espetáculo, já no palco, interpretando uma prostituta pós-moderna e cantando (dublando) Janis Joplin, em "Kosmic Blues", um luxo de imagético e dialética de desapropriação do convencional à apresentação de inquietações da natureza artística e humanas de construir a cena de beleza e impacto estéticos.

Diego Saraiva, Fabiano Di Melo, Levi Tavares e Lourimar Vieira, relevam em suas atuações, toda uma trama do enredo, considerando os mesmos eixos estratégicos de contar uma história, sem ficar no lugar comum, mas recuperar o lugar comum da história narrada.

Não perderem-se da beleza e do sentimento nativos das memórias afetivas desveladas, no rosário de contas licenciado. Mergulho no concreto e imaginário de registros secretos de pequena, média e longas distâncias do eixo de lembranças e vivências de Poim, o homem que já foi menino, o migrante que rompeu velhas tradições e cunhou seu pássaro azul.

Lourimar Vieira compõe, para a dramaturgia cartografada, a personagem de si mesmo e reverbera memórias afetivas, em feitos de narrativa dramática de cena. Recorre, como todo o bom suporte de elenco que encorpa o jogo dramático, ao perfil da linguagem contemporânea, de narrativas dinâmicas da nova cena, com uma tranquilidade e economia para não trair-se, a si mesmo, nas emoções de vapor barato e conluir com gratidão e solidariedade ao direcionamento pensado pelo dramaturgo de palco.

Elenco seguro, Camila, Diego, Fabiano, Levi e Lourimar, que deixa uma lição de cena dinâmica, juvenil, alegre e baseada na técnica de persuadir ao convencimento, com qualidade de bem narrar a proposta vivaz que o Teatro do Kaos apresenta em "Os sapatos que deixei pelo caminho".

(Lourimar, o Poim, ao fundo, e Camila Sandes em performance musical/fotos Marcos Montelo)

A direção do espetáculo, Marcos Felipe, copta linguagem, texto carpintado ao propósito do teatro, cenografia que se vai revirando como a memória prospectada, a cada ganho e avanço da narrativa, energia de cenografia de cotidianos de trabalho,

No revés aos eixos familiares expiados, afina atores para atomizar arte, teatro, memórias de identidades, que comungam pertencimento e afirma cena voraz e sedenta de engolir o espectador e o faz pelo pé. O público é cúmplice e digerido, como alimento potencial, pelo monstro dramático, volta fortalecido com a matéria quântica que é gerada nessa expansão de dramaturgia exercitada.

O texto em harmonia com a dramaturgia de cena, entrefude temas delicados como pedofilia, "bullyng", descoberta da orientação de gênero, da doença degenerativa que impulsiona a personagem, de centro, a catapultar a própria vida, entre outras variações de oralização do própria vida de Poim. Enriquece as letras dramáticas com o caótico ir e vir de memórias.

Impõe à plateia a necessidade de uma atenção vigiada, para não perder o fio de ouro que os fusos e almofadas de bilros, de boas e más lembranças, vêm construindo em encorpo no enredo feito de sons e fúria, imagens e corpos que falam da intrínseca emoção memorial.

(o homem da repartição pública, memórias da personagem/fotos M. Montelo)

Há um conjunto de acertos da dramaturgia que bifurcam ao endosso do rio de conspiração do bom teatro que o Kaos pratica. Luz, cenografia, figurinos, as máscaras de bode à metáfora do bem (o bicho comum do sertão) e do mal (o sátiro, o com pés de cabra, o bicho homem dos mitos populares e religiosos nordestinos e ou referência urbana do danado), o bolinador, o "bode" tinhoso para pequenas maldades, perversões e perversidades de domínio do inventário popular.

(os cara de bode/fotos Marco Montelo)

A licença poética aos diálogos com bonecos manipulados a quatro mãos, um belo de quebra da ascensão e dinâmica quente. A apropriação da linguagem infantil de inanimados animados para aproximar memórias de infância, adolescência e juventude buscadas e emergidas, é muito legal.

(memórias infantis narradas por bonecos/fotos Marcos Montelo)

O filminho animado, que envolve um adulto e um menor, cavalgando, alivia a denúncia ilustrada do assédio à criança. O efeito de desenho animado de uma cavalgada gera lúdico disfarçável ao crime. A revelação do"coito", é de uma sutileza e construção plástica comoventes. A animação impacta com a revelação do sexo de violência com a criança e o retorna à cavalgada constrói uma abstração do crime.

Os diálogos, com balõezinhos de quadrinhos animados, durante as práticas de pedofilia, sob a árvore, também detêm escolha inteligente em tratar do tema, sem ter que encenar o assédio de forma realista. Cria uma linguagem poética para não agredir + do que poderia agredir e não deixa de abrir diálogos de natureza infantil, para reproduzir a ingenuidade de que era acometido o menor, quando sofria abusos. Ideia muito feliz de tratar do assunto.

Moderno, contemporâneo, caótico de revirar conceitos e manter foco na prática cênica de gerar novidade, é assim que se apresenta "Os sapatos que deixei pelo caminho", do Teatro do Kaos. Entrecruzam-se poesias de imagens em vários momentos da encenação vista. A chuva de sapatos, meteoritos na forma de calçados, decaindo sobre a personagem protegida sob o guarda chuva colorido, outra ótima imagem vista na peça.

Vários sapatos foram deixados pelo caminho percorrido pelo Teatro do Kaos, quando da apresentação do espetáculo no FestLuso, no último dia 25 de agosto. Os despojos continuam sendo recolhidos pelo público, são as memórias afetivas que contagiaram a recepção. Estão levados para casa conversas e discussões sobre teatro visto. O papel do Teatro do Kaos foi cumprido.

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