sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Bailarina Torturada



Bailarina Torturada
por maneco nascimento

De Mindelo – Cabo Verde para o Brasil, uma nova montagem de João Branco, diretor/encenador daquela África lusófona, abriu novo intercâmbio cultural da cena viva ao palco do Theatro 4 de Setembro, dia 4 de outubro de 2012, às 20 horas. “Teorema do Silêncio” veio para o público da cidade que não desperdiça uma oportunidade de aprender a aprender com o teatro visitante.

“Teorema do Silêncio”, uma reinvenção da literatura dada para a dramaturgia do palco que se finaliza em montagem, propriamente, pelo argumento do Coletivo Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo – Cabo Verde e assinatura de texto de Caplan Neves.

João Branco + uma vez assina direção e mapeia a dramaturgia de cena vista. Um quarto de delicadas torturas está montado, com atores em aquecimento, quando o público começa a ocupar seu papel no teatro proposto.

Um sofá gigante ao centro fundo do ambiente, dois assentos nos lados extremos do tatame (um ao professor de matemática, outro à aluna aplicada), um cabide à esquerda da cena, um telefone às emergências e uma mala (caixa de Pandora) compõem a cenografia (João Branco) do enredo dramático do velho, no limiar da morte (s)em culpas, e da menina ensinada.

O espetáculo evolui da neutralidade dos intérpretes para entrar na escala de (-) e (+) de matemáticos efeitos e lições repetidas. Parte do -1 para avançar em escala ascendente a régua positiva da encenação que, a cada remoer das velhas memórias vomitadas, vai assumindo um crescente para dramas, perversidades e tiros de metralhadora giratória ao lado de vilão e da “anti-heroína”.

O que poderia parecer fragmentos, entrecortados, das memórias sujas alinhavam costuras textuais e inflexões das personagens na volta ao mesmo ponto da prisão que mantém o “Urso Pan” e a garota molestada. As variáveis e ou troca de espaços da cela, desse “amor” bandido, parecem deixar o rastro de contágio do inseto que, ora estaria no histórico do professor, ora no da aluna que dinamiza falso perdão e vingança premeditada.

Abordar a pedofilia pela pedagogia das contas e aritméticas regurgitadas, uma maneira elegante e nunca apelativa de apresentar o monstruoso mundo do pedófilo e seus maneirismos de abocanhar a inocência perdida. Os claros escuros dos recortes das lembranças dolorosas da menina, um dramático limpo e econômico de torturar o receptor sem derramar, de forma óbvia, o sangue da virgem.

Janaína Alves, já havia provado que, se provocada, sabe morder e assoprar. Carrega uma menina/mulher metamorfoseada de sutis variações entre falsa ingênua, perversa e “pervertida” à força do contágio com a pele dos anjos. Entre a contenção e o derramar do drama expiado, amadurece não só o exercício para esse mote apresentado, como confirma o fruto “devez”, todo voltado ao sol que naturaliza o gosto maduro.

 
(arte divulgação do espetáculo/acervo: 
Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo – Cabo Verde)

O antagonista da criança molestada, muito bem conduzido por Fonseca Soares, não desperdiça qualquer chance de comunicar bem. Nem mesmo o português, com sotaque específico de sua nação, causa quaisquer ruídos na recepção. Os gestos e os matemáticos arrastados que sujam o chão do quarto/sala da “desgraça” dividida têm trato de exercício experimentado e competente.

Não há exageros na montagem, mas especialmente compreende o casal de atores (Fonseca e Janaína) o que encena e impulsiona em suas personagens o distanciamento da práxis do teatro de proposição brechtniana, na medida do drama apresentado, e toma toda distância premeditada do discurso panfletário.

Dramaturgia textual inteligente, pragmáticos cortes e rejuntes das voltas ao mesmo ponto, ampliando e acrescentando novo dado. O “de jà vu” a cada reentrada apresenta novo veneno sorvido com modéstia ensaiada no universo das torturas sob medidas.

A dramaturgia projeta-se pelos detalhes significantes e de significados plásticos. Os espasmos de pesadelos da bailarina torturada, uma caligrafia sendo aprimorada na linha da escrita da memória dolorida até apresentar o testemunho completo da liberdade da menina que dança pra viver e morrer, conforme a música marcada em partitura.

A Iluminação, de João Branco, sutil. Registra o flagrante das torturas, monta os tempos e quebra do tempo e desconstrói perspectiva de linearidade dramática. A Pesquisa Musical, do Coletivo GTCCP do Mindelo – Cabo Verde, já nos apresenta, de início, uma tortura chinesa da gota d’água ambientada numa sala de luz recortada, com a sombra recorrente do ventilador de teto. As incidências da música dos pesadelos da bailarina torturada, um tema infantil contagiado pelos espasmos das memórias ruins, vão somando os números da aula apreendida.

O Figurino sóbrio e neutro, uma pesquisa dos próprios intérpretes. Do branco/bege do vestido da garota ao preto esfarrapado da camisa do professor de matemática, um embate de expressionismo do espírito retalhado de um e da busca da redenção negada por outra. Tem uma medida pensada que parece ter menor importância, diante das falas sociais embutidas na guerra silenciosa entre o casal. A segunda pele tenta desviar a atenção da primeira, toda exposta na lavagem de roupa suja.

João Branco, dramaturgo de cena, facilita 55 minutos de dramaturgia construtivista e reflexiva dos valores e comportamentos sociais, presentes em qualquer sociedade, com suas pontas de iceberg da anomalia à vista, mas por vezes envoltas por nevoeiros, ou vagas de águas tortuosas. Reúne um elenco muito eficaz que demonstra entender o árduo caminho da cena elaborada e a difícil arte do fingimento.

O público artístico das cênicas da cidade verde perdeu uma boa oportunidade de ver uma forma apropriada da experiência insistida, mas de linguagem universal, já que cartesiana, de praticar teatro. Também se desviou de observar um colega em cena, com suas peculiaridades e diferenças lingüísticas do tronco comum.

Boa parte dos intérpretes de Teresina, talvez, por se julgarem já prontos, logo selecionam qual teatro precisam ver. O ator pronto é o artista morto. Há no Coletivo Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo – Cabo Verde um vicejar de energia e dinâmica de teatro vivo.

Fica a lição de matemática perdida por alguns do teatro local. A dramaturgia coreografada à bailarina torturada, em “Teorema do Silêncio”, um livre exercício de cena acertada. Ganha o teatro para lusófonos e alhures interessado.

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