segunda-feira, 25 de agosto de 2014

"Vigiar e Punir"

Genet, Bahia, Foucault e de quebra Brecht
por maneco nascimento



Teresina recebeu um exercício de ator e método à ciência envolta na sensibilidade cênica e uma boa dose de ousadia e transgressão genetiana revisitada, com olhar à política e discurso de ver o outro que ninguém quer enxergar.

O Diário de Genet, montagem do ATeliê voadOR Companhia de Teatro, baiano, de Salvador, com texto e direção de Djalma Thürler e construção dramatúrgica laborada com toda presença de Duda Woyda e Rafael Medrado, se apresenta com acuidade de ver o que está dentro e fora das convenções das sociedades "perfeitas", assépticas e as sujeiras simultâneas e humanas, sejam as das memórias e dramaturgia real licenciada de Genet, sejam as de qualquer sociedade e os renovados modelos de vigiar e punir de que tratou Michel Foucault.

A peça foi vista por um sucesso de público e uma boa disputa pelas últimas entradas, na noite do dia 23 de agosto, a partir das 19 horas, na Galeria do Clube dos Diários. Espetáculo montado em espaço alternativo, uma Galeria de Artes, talvez não tenha possibilitado o melhor ponto de visão para quem acorreu curioso ao evento, por conta do espaço não ser apropriado para receber espetáculos na estrutura palco italiano, mas no que diz respeito ao tratado de arte e tratamento cênico, nada que desabone a performance da Cia. baiana.

Quando público adentrou a Sala já havia a cena montada. Em despretensão pretensiosa e  de caso pensado, os atores recebem a plateia enquanto "varrem o palco" e, entre intervenções indiretas ao público, diretas à produção e troca de diálogos entre eles, vão costurando uma dramaturgia distanciada, aparentemente de improviso, que funciona como prólogo no aguardo de acomodação do público.

Da cenografia, duas vassouras escovões, folhas de papéis ao fundo da cena que tomam função a partir de determinados narrativos, as garrafas térmicas, com água, personalizadas, cor preta, que os atores utilizam durante a empreitada para hidratarem-se e, bem ao fundo da cena, folhas de papel presas a cordões, por pregadores de roupa que, nalgum momento, são alçadas pelos atores e licenciam talvez literatura de cordel, o sorriso do gato de Alice, a meia lua de bandeirinhas ou trapos nos morros mal vestidos de que falam Orestes Barbosa e Silvio Caldas (Chão de Estrelas), ou ainda o sorriso de Genet espalhado no varal da licença dramática. Cada um com sua recepção.

(tensão, tesão, sexualidade e uso dos prazeres/fotos Maira Lins)

Ainda da marca cenográfica, luminárias suspensas que são (des)afinadas e definem-se na ação de Iluminação (Pedro Dutra Benevides) e outros pontos que são montados pelos atores na cena. Da cena livre, despojada, à densidade dramática para levezas, economias e sentimentos aflorados dentro e fora do universo de Genet, sempre com muita técnica de bem encenar e preparando a plateia, quando se incia o jogo da narrativa, às vezes do autor, e quando distanciam-se para aproximar o dramaturgo francês da realidade nossa de cada dia, nas exceções e nas regras sociais de paradigmas que definem o que se pode ser aqui ou alhures.

Apresentam a personagem Genet e brincam de fingir ser, ou não ser nas identidades de si em ser Genet e suas personagens do mundo, submundo, (in)delicados perfis das memórias revitalizadas, regurgitadas e frescas nas vozes sociais e anti heroicas que povoam a literatura dramática genetiana. 

(Rafael e Duda apresentam a representação de Genet/fotos Maira Lins)

As "fugas" das memórias retratadas do dramaturgo selecionado trazem comunicações com montagem brasileira de uma de suas obras encenadas no país, década de setenta, e a vinda deste ao Brasil; idiossincrasias reveladas e histórias de impedimentos sociais e explicações sobre o processo de montagem de O Diário de Genet e, de volta a Genet, Duda Woyda e Rafael Medrado representam a representação do autor em seus vieses de vê-lo, compreendê-lo e mantê-lo livre das amarras sociais que o artista sempre combateu para viver a liberdade que lhe sobrou no mundo que lhe negou amor e família. 

As citações de Balcão, Querrelle, As Criadas, entre outras criações, o jogo de representação das criadas bancando a patroa e os sempre comentários distanciados sobre obras e autor transformam a montagem em metalinguagem redimensionada e teatro vivo dentro da tradição e modernidade confrontadas. Estão lá com a agressiva e (in)sutil nudez manifestada do marginal, do poeta ladrão, do grande artista, do homem e sua hora em mundo que viveu  e negou-lhe outra escolha. 

A puta, o marinheiro, os homens desejáveis, o assassino, o amante, o passivo dominante, o ativo entregue, o violento, a polícia suja com seu sexo atraente, a negação e aceitação da condição (im)posta, domínio e dominadores, sexo, prazer, segurança de sentir prazer e defender a vida e obra confundidas e expiadas na subalternidades dos mundos dentro do mundo nosso de cada dano. Todo Genet experimentado e feito obra de revivificação realizada pelo ATeliê voadOR Companhia de Teatro, com segurança e domínio do teatro e processos propostos.

(confronto de forças/fotos Maira Lins)

A Direção Musical e Trilha Sonora (Roberta Dantas) também abre + "solidões povoadas de presenças" e emblematiza o universo conspirado à cena de estético efeito e reforço das memórias visitadas. Os áudios reproduzidos com a voz de Genet traduzem não só a presença viva do artista em seu discurso transgressor e humano, sem  nunca negar a si mesmo, nem as suas escolhas, mas um mergulho na alma inquieta e sincera revelada.

A Direção de Arte (José Dias) repercute o simples, sígnico e presente dialética de transversalização de linguagens que refletem o eixo do furacão em (des)ordem da humanidade refletida na estética concentrada e sem gorduras. 

O Design Visual (Clarissa Ribeiro, Talis Castro) também afeta no simples, com recursos de cores em preto e branco  que sensualizam e gestam curiosidade da recepção, seguidora da sugestão de envolvimento na narrativa também a desenhos que desnudam e guardam segredos soçobrados e sinalizados em corpos que falam por si mesmos e por estratégias da linguística da imagem exposta.

A Direção do espetáculo (Djalma Thürler), que assina a dramaturgia textual de dois mundos aproximados, se em mundo de culpas e pecados, peca pelo zelo conseguido em prospecção no objeto de pesquisa e desdobramentos da razão e sensibilidade reunidas na liberdade e licença poética praticadas. Realiza novidade e teatro que se sustenta por reinventar o foco de atuação e parecer não fugir do lugar comum, mesmo quando, despretensiosamente, o faz com arte livre de velhos conceitos.

O Diário de Genet consegue uma cumplicidade muito eficaz dos atores Duda Woyda, ator 1, segurança e sofisticação em representar um narrador em personagens que, como propõe a dramaturgia, são apresentadas de fora vida adentro. Rafael Medrado, ator 2, não fica por menos e se propõe dramático e distanciado e numa verve quente de inflexionar falas e vozes sociais que orbitam em Genet e em tantas outras interfaces familiares da arte de construção da personagem que vigiam do autor ao intérprete e do intérprete à arte do fingimento.

Espetáculo que varia entre o perturbador reflexional,  encantador por natureza reveladora das mortes sociais de fala Genet e provocativo de impor que enxerguemos mundos que negamos por estarem fora de paradigmas da convenção socialmente conveniada e à luz do vigiar e punir.

O Diário de Genet, espetáculo da ATeliê VoadOR Companhia de Teatro, é 10+.

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