sábado, 25 de agosto de 2012

Triângulo das calcinhas


 Triângulo das calcinhas
por maneco nascimento

Perdoem-me, os insatisfeitos ou de recepção engessada, mas não dá para trair nem a obra, nem o autor, nem muito menos a leitura de Luciano Brandão para “Perdoa-me por me traíres”, de Nelson Rodrigues.

Dia 23 de agosto de 2012, data de centenário de nascimento do “Anjo Pornográfico”, em que todo o país celebra a Flor de Obsessão, Teresina também não ficou de fora das homenagens. A Oficina Permanente de Teatro “Procópio Ferreira” enveredou, + uma vez, pelo universo nelsonrodrigueano e brindou a cidade com montagem delicada e distanciada para efeito de Nelson e seu teatro vivo revisitado.

Dezoito atores dividem a cena e dão sorte de apreciação das personagens (da classificada no plano de Tragédias Cariocas I, por Magaldi) que enredadas na obsessiva estética (re)criadora do teatro brasileiro alçam vida.

Envoltas em sexo, traição, pedofilia, vidas dissimuladas, incesto, ódio, amor e morte, as crias de Nelson ganharam leitura livre e brechtniana para densa trama trágica. Acenaram para Luc Brandão e deram ao público o ar de sua graça sórdida. 

De dramaturgia diferenciada, não se encaixa no modelo para os que esperam sangue derramado. O diretor opta por dividir a protagonista, Glorinha, em três faces da mesma moeda. 

A falso anjo, representante de família honrada carioca, se desdobra em falas diretas e cheias de meneios ao engodo, através das atrizes iniciadas Clerys Derys, Gleiciane Silva e Milena Barros. Não fazem feio, as escolásticas da “Procópio” às de Nelson. Mantêm fidelização ao texto, ao contexto de leitura do montador e ao discurso “pérvido” do autor.

Manter o elenco + tranqüilo e neutro, para contenção de exageros, parece ter sido escolha inteligente do encenador. Os atores deslizam em cena, atraem o interesse da plateia e esta interage ao humor sórdido e inteligente que a obra apresenta. A sacada de apresentação das personagens, em meio à construção da cenografia móvel, remete ao cotidiano descritivo e narrado das vidas em jogo.

Os painéis (móbiles) e os praticáveis de ambientação do enredo, cenografia pensada por Wallance Nunes, surtem integração ao maneirismo de contar um Nelson, escolhido pelo diretor de dramaturgia de cena, que têm função prática, longe do teatro morto.

A cenografia, uma talvez (re) visita às memórias do teatro nacional ziembinskiano que construiu, com seu cenógrafo Tomás Santa Rosa, a montagem original de Vestido de Noiva (1943). 

Como regra religiosa da cena ao que o universo conspira a favor, quando se compreende a obra buscada, Luc Brandão consegue concentrar a energia e atomiza o discurso do dramaturgo sem exageros desnecessários, tem a economia premeditada e o drama original mantido quando a hora é chegada.

A Iluminação, de Renato Caldas, está contida na proposta, é cálida quando exigida e pragmática quando o ator e o texto são + importantes à observação. Desenha ambientações interativas com as vozes sociais que contêm a trama. Os figurinos, de Wallance Nunes e Danilo França vestem e despem com cuidado as personagens. Contextualizam bem. Batata!

A Pesquisa musical, de Luc Brandão, delicada recorrência de “Preciso me encontrar”, composta por Candeia, originalmente gravada por Cartola, abre uma memória e nostalgia embriagante do contexto para Nelson de sua época, ao passo em que quebra o paradigma do tempo e atualiza o contexto a novo viés de interesse estético.

O elenco de ousadia impetrada não desmerece o Nelson, nem o envergonha. Está no seu tempo de atuação e, maturidade tem fases como repertório e conhecimento. Em seis meses de contato com iniciados da “Procópio Ferreira”, o coordenador do laboratório e diretor de ator consegue melhor resultado que outras iniciativas + formais e de bancos escolares mantido na cidade.

Gilmara Santos, intérprete de Nair, a garota agenciadora de meninas ao velho deputado, tem um tempo legal à personagem. Na pressa de avançar na cena, por vezes perde o sabor do texto tão mastigado pelo autor. + tranqüilidade e ouvido de tuberculoso, talvez lhe garanta a finalização de personagem que andeja, ainda tímida, rumo ao olho do furacão.

Kaio Rodrigues, como Pola Negri, mantém uma desenvoltura que peculiariza a sombra da madame cafetina. Tem graça e estilo econômico ao “maricas” do enredo.

A Madame Luba, de Lorena Soares, afiniza um perfil da cafetina lituana. Talvez por ser rechonchuda e concentrada na boa forma física garante desejos + ascendentes que decadentes a dona de casa de pedofilia. Pisa, ainda falhado, sobre os cobres da cafetinagem. Mas elementa beleza, truques de fingimento e segurança em processo de depuração à personagem. Não compromete.

O Deputado Jubileu, construído por Enzo Pietro, se aproxima muito dos velhos pedófilos da cartilha nelsonrodrigueana. Sua composição em que valoriza uma corcunda de poder e malícia compradora do prazer por garotas de menores, é bonito de observar. Há uma máscara rude e pervertida, uma perversão de velho babão, típico de Nelson.

O médico (Leandro Mesquita) e a enfermeira espírita (Adriana Martins) que praticam o aborto na menina Nair (Gilmara Santos) estão entre os núcleos que ainda merecem finalizar melhor as falas tão cheias de poder determinante sobre vidinhas alheias. Ouvir-se +, talvez melhore o desempenho à cena.

Tia Odete (Angélica Araújo), mulher de Tio Raul e a refém das doses homeopáticas, ainda não compensou as doses ministradas pelo autor para maior empenho da personagem. Suas falas emblemáticas de abertura e fechamento do espetáculo ainda estão aquém da verve da velha, espectro que assombra a casa. As falas de memória ainda esperam melhor verdade.

Ceci (Gissele Torres) e Cristina (Mary), as amigas de Glorinha, correm atrás do prejuízo para não perderem o fio da mei’água que escorre da tempestade que se abate sobre os destinos das meninas moças. Sentir a contracena é elementar. Os irmãos I (Lucas Brito) e II (Hélio) estão no conjunto e na tranqüilidade do confronto, não comprometem. Comportam-se com economia e compõem a cena.

Gislene Danielle (a Mãe) também tem energia equilibrada ao contexto da estética encenada. Regurgitar com + sabor as malícias e perfídia, dos entre textos, valorizariam melhor o perfil que passa pelas velhas e sogras nelsonrodrigueanas. 

Um dos filhos da trama, Gilberto, composição de Ronyere Ferreira, é compensador. O intérprete que abraça distúrbios do corneado pela mulher linda, linda, linda, o faz de forma muito apaixonante. É de um engraçado trágico e passa quase pela escatologia autoral. 

O baixinho da mulher gostosa empenha uma verdade de paixão suicida e surtos de loucura passional convincentes. Um dos melhores entendimentos. Mais prazer mórbido em desvios da conduta de traído será o ponto do doce fel.

O antagonista da história, Tio Raul (Wallance Nunes) caminha a franco acerto. Textão enxuto da personagem precisa encontrar uma maior acolhida do intérprete. Ainda atropela pequenas intenções, mas apresenta orgulho canalha e fúria pervertida que envolve a assistência.

Lamber os beiços na maldade premeditada e na paixão suicida daria um toque de Midas ao sentimento de amor transferido da amada à menina desejada. Tem presença em cena, contenção e liberdade degustadas orgulhariam até o autor.

Judite, construída por Lanna Borges, a mulher que trai, detém à intérprete beleza, fascínio e desenvoltura lançada em jogo e, nesse tabuleiro da representação, encontra na atriz ecos de afinidade aos desejos psicóticos dos homens da casa. A Judite de Lanna tem um perfil da cínica, adúltera e mulher ideal do corno.

Da dramaturgia de encenação, uma cartografia refinada de cena à cena. Geometrias confundidas com sentimentos espalhados pelos ambientes de obsessão, crime e castigo. 

Meninas grafando seus “desejos infantis” com riscos de carvão, ou elaborando percursos infanto juvenis despretensiosos, em jogos de mostrar e esconder verdades, sem nunca buscarem apelo fácil, revelam sutis maldades, pequenos delitos em doce deleite. 

A mulher que retira o laço do vestido e desvela belas pernas sob a lasca do tubinho, é de uma malícia empreendedora do mote “pronta pra trair”. 

Os planos de distância e aproximação incrementados pelas Glorinhas, seus recuos e fugas do sentimento das “falsas violadas”, um deslumbre, assim como a espacialização aos tempos de memória e realidade (Vestido de Noiva) que ampliam a compreensão narrativa, com tradição e modernidade. 

A encenação de Luc Brandão, que ainda encontra apoio na confecção de Cenário, de Leonardo Sousa, e Maquiagem de Danilo França, completa o eixo de aplicação plástico estética da investida da Oficina Permanente de Teatro “Procópio Ferreira” para “Perdoa-me por me traíres”.

É uma novidade para Teresina e cheira a novos ares de facilitação à cena teatral local. Há um mapeamento do triângulo das calcinhas como sinal de teatro vivo. Quem não gostou, que gostasse. E, como diria o Nelson, batata!

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