terça-feira, 1 de julho de 2014

Leia, conheça-se

Literatura nacional

“Quatro Soldados”
por maneco nascimento


História brasileira, de fronteiras da construção social nacional, século 18 (1754), jesuítas, portos, cabarés, obscurantismo em retirada, cotidiano provinciano em terras ermas, superstições, ignorância, iluminismo tupiniquim de personagens, leitores e leituras, contrabando de livros, literatura histórica, ficção embasada em talento e curiosa atenção a dados históricos.

Vívida arte de lidar bem com as letras para tramas e enredos inteligentes, ricos de detalhes. Leitura simples a qualquer bom entendedor da complexa história contada com efeito de refinado ato de escrever.

Um menino órfão de mãe, no parto, rejeitado pelo pai e salvo pelo anjo da guarda (um oficial do exército imperial) que o convence à carreira militar.
 O alferes Licurgoo primeiro herói da trama que comete suicídio ao fim do primeiro capítulo. O impacto de entrada da obra, capaz de frustrar o leitor.

O que se descobre, no segundo capítulo, é que o mocinho errou o dia da própria morte. O tiro do lado esquerdo poupou seu coração, este plantado no lado direito do peito. É salvo por quem fora matar. Da nova amizade desenvolve o ato de ler, ouvir e amadurecer a humanidade em construção, apesar dos dezesseis anos de idade.

Antonio Coluna
branco, de família tradicional, herdeiro de posses, mas que não dá muita importância, prefere construir a própria fortuna crítica. De boa educação. Escolheu a carreira militar, homem justo, o bom herói, solitário. Também componente dos Dragões do Império, carreira segura nas terras hostis do novo mundo. Envolto na guerra suja para front de jesuítas, índios gentis e filhos aldeados da Companhia de Jesus, espanhóis e gentios aliados, brancos portugueses, povoadores da terra, bugres, mandantes e matadores de aluguel.

Andaluz, o herói apaixonante, pegador de todas as mulheres que quiser e desejado por todas as outras. Viajante de outras terras e mares, registro de aventuras das mais diversas. O que o salva, em terras brasileiras, de povoado à convivência de comuns, prostitutas, bares, jogos, superstições, ignorância, corrupção moral e política (hábitos estes que não condena) é o fato de ser letrado, ter lido boas e grandes obras, especialmente as proibidas pela Igreja e pelo Rei.

Amigo de corsários, marinheiros, comandantes de navios, filho de tipógrafo e com irmãos no ramo de tipografia, consegue contrabandear, da Europa ao Brasil, livros raros para deleite de si mesmo e aos clientes leitores na província.

Amado por alguns e odiado por muitos outros, fugitivo de “erros” do passado, cão Andaluz é o exemplo do homem viril, atlético, fascinante e de inteligência garimpada pelas experiências. O gigante cego e protetor da cidade, com conhecimento científico constatado a partir de obras lidas, é o requisitado a resolver problemas de bagunça, de crimes e outras exigências que o povo, sozinho, não encontraria a solução. Humanista, iluminista, cínico, anarquista, ótimo amante e solidário.

O herói moderno, indispensável a romances sitiados em contextos medievos, orbitados no século das luzes. O livro + aguardado a consumo próprio e que o distrairá da mesmice local é A Enciclopédia. Até onde o romance acaba, ainda não conseguiu a proeza de que seus fornecedores lhe enviem a grande Obra.


Soldado Silvério,
 cruel, sanguinário, assassino de aluguel, frio e determinado a cumprir uma missão. O Índio Branco, como ficou lendariamente conhecido, mata qualquer um que esteja no caminho dos interesses de portugueses e proprietários povoadores do país. Novos sesmeiros, jesuítas e aliados da Companhia de Jesus podem cair na lista do matador.

Órfão, foi criado em orfanato protegido por seminário, conseguiu tradicional educação religiosa e moral e algum apoio financeiro, em troca de favores pessoais doados aos padres acolhedores. Perfil esfíngico e pragmático senso de dever.


(Samir Machado de Machado/foto Fred Cabral)

Quatro Soldados, obra do gaúcho Samir Machado de Machado, desenvolve um enredo cheio de humor e inteligência criativa em intertextual construção literária histórica. Homenageia mulatas do Sargentelli, em personagens de prostitutas da casa de Joana Holandesa, a cafetina do pedaço. A mulata Adele de Fátima é um dos exemplos.

Muralhas e torres intransponíveis, com suas armadilhas, labirintos, corredores, escadarias, ricas bibliotecas, animais ferozes e monstros fantásticos e fatais são algumas das licenças tomadas pelo autor para dar sabor de leitura e prender o leitor.

O dialogismo indireto na terceira pessoa, por vezes perde essa característica e o autor mantém conversa com o leitor numa tendência à prática machadiana. Aproxima aquele que lê da personagem narradora (quase sempre em terceira pessoa), confundida com o autor em diálogo direto com o leitor.

Obra pulsante em trezentos e vinte páginas, Quatro Soldados foi lançada, em agosto de 2013, na cidade de Porto Alegre, pela editora Não-Editora. Não só confirma Samir Machado de Machado como autor descolado, como reitera o natural rigor da pesquisa à construção de sua trama e seus dramas invertidos em verdade da ficção. 

(capa do livro/divulgação)

Literatura ágil, competente e, especialmente, dona da boa escrita.

2 comentários:

  1. Olá. Fico imensamente feliz em saber que o livro te entreteu. E obrigado pelos generosos elogios;

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  2. não entreteu só, abriu curiosidade de olhar para olhar sensível e técnico de coptar história brasileira e transformá-la em ficção rica de criatividade e dedo criador. ótima leitura

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