terça-feira, 13 de setembro de 2016

Um mundo em Corpo

o corpo em Lina
por maneco nascimento

"Encontro coerência quando reagrupo identidades. A arte vai reunir tudo. O sistema fica sempre aberto. Reflete a busca aberta pela essência que imprime o desejo silencioso de manifestar a razão de existir (...) É preciso estar livre da reputação para viver a essência (...) A viagem para o espaço de dentro é autoiniciação. A viagem para o espaço de fora é emanação da presença (...) O eu é insondável. A verdadeira natureza fica evidente quando percebemos aquilo que não somos (...) O segredo está em restringir o que impede algo de existir vivamente." (Carmo, Lina do. Corpo do Mundo - Criações, raízes e caminhos improváveis na poética do movimento. Rio de Janeiro: Ilimitados, 2015. 432 p.) 

Criações tangibilizadas ao provável da técnica, estética, plástica, experiências cunhadas, desde a menina que ensaiava passos de dança até à ponte possível à estrela da bailarina, coreógrafa, professora-facilitadora, intérprete-criadora, mestra na arte do movimento em corpo falante e, doutoranda na arte de bem dançar, pela síntese, mímesis ampliada, ciência e método e razão sensibilizada pelo ato cênico.

Intangibilidades recrutadas pelas "Criações, raízes e caminhos improváveis na poética do movimento". Nesse sub-lide de sua obra "Corpo do Mundo", Lina do Carmo se nos assegura, leitores, que há uma beleza de experiência contraída e contada, feito memórias de uma vida pela dança, feito tese acadêmica informal, de registrar e marcar inventário, na (re)invenção da carreira.

Nove capítulos eneagramáticos recontam os caminhos, percursos, sua diáspora na busca de um sonho possível. "Lá vida es sueño", como vaticina Calderón de La Barca, numa lúdica reflexão poético-dramática, expia a sugestiva busca da vida pelos impulsos de sobre e viver uma inciativa do salto humano.

A vida é um sonho, possível.  A menina, nascida na rua Tiradentes, próximo da Praça do Liceu Piauiense, centro norte de Teresina. De origens nordestinas, com avós maternos de ascendência portuguesa, que vieram esbarrar às margens do rio Longá (norte do Piauí), onde estava plantada a fazenda Vitória, local das férias de criança. Já havia um traço de vitória nos sinais de memórias afetivas.

Na propriedade dos avós, em que tinha o riacho preferido (Parede Furada), ou o recanto sagrado ao banho feminino (Mocó), essa prodígio já demonstrava a veia pulsante de artista, ao ponto da avó Maroca (que evoluiu aos 102 anos) declarar para a mãe de Lina: "A Lina do Carmo é como um pássaro e vai acabar voando longe. Você não vai segurar essa menina." A menina, que registrou o comentário da Vovó Maroca, acredita que esta lia o destino.

Lina na pele e ousadia do próprio pássaro azul bateu asas, quando seu tempo migratório chegou. Fortaleza, São Luís, Rio, EUA, França, Alemanha. Palcos, técnicas, estéticas, atos criativos e criadores da construção da personagem de Corpo no Mundo. Uma dona de suas experiências cardiogramadas, em aritméticas do mínimo e máximo divisores comuns da dança, em mímica, mime drame, expandida.

O livro, um reparo na história, na melhor expressão nordestina, "arrepare mermã na vida como ela é". A artista faz um retorno à Casa, enquanto conta como conquistou as coisas e as causas porque sempre teve impulso de humana compreensão, como diria Drummond, para a conquista de si mesma, seja como artista, mulher, mãe, criadora, acadêmica, mas, especialmente, como aquela que descobriu no simples os melhores efeitos de imersão no próprio eu e tirar novas receitas de arte e vida a efeitos de restauração do eu consigo e com o outro.

Uma bela obra, dedilhada a passos de entender-se e deixar que as memórias criem alguma identidade com quem seja afim e filtre o que sobra do espaço comum da vida da artista. Entre o comum e o sobrecomum, das histórias relatadas, as surpresas inventariadas que repercutem origem vencedora, determinação de fuga do óbvio e resiliência, porque somos todos mortais, mas com traços ancestrais de reconhecer o fogo presenteado por Prometeu à quebra dos paradigmas deterministas.

As origens são perscrutada e se reelaboram na estética de pesquisa, exames, investigações rigorosas e indagações que ganham sujeito de lúdico e plástico, mas que nunca desmentem as antropologias e arqueologias culturais experimentadas à realidade da arte, do artista e da recepção provocada.

Assim, processos de "Capivara", "Otelo", "Victória Régia", "Voodoo de Plastik", "Aruanãzug", "Lustspiel", "Viajante da Luz" ganham expressão quântica nos relatos transcritos. Fortaleza, São Luis, Rio, Estados Unidos, Decroux, Paris, Marcel Marceu, Colônia - Alemanha, Festival Interartes, Karajá, Gurdjieff e a Lei dos 3, mundos contidos no mundo de Lina do Carmo.


(fotos/imagem: acervo Lina do Carmo)

O corpo das sensações, O corpo das fugas, Entre mundos, Corpo dos arquétipos, Corpo - território sem fronteiras, Pororoca de sentimentos, Entre lá e cá, Retornos e retornos, Do corpo físico ao corpo espiritual, Corpo da transcendência, Viagem à Índia, O vaso da alma, Enraizar-se no sagrado.

"A bailarina não sonhou nada à toa". E a prova dos nove continua em dinâmica expressiva, átomos materializados à forma, fórmulas abertas na transversal da arte experimentada, pelo sonho em vida laborada e  vida em sonho real consignado à força material, às imaterialidades criativas trazidas à visibilidade estético-artísticas.

Um livro para quem quer aprender a aprender que Deus está no silêncio, mesmo que em ruidosa arte expressionista. Impressionismos lançados à metamorfose do Amor e à forte fala do silêncio, que geram corpus de pertencimento ao corpo que fala.

Ótima leitura e um mergulho numa arte-experiência invejável. Essa menina-moça-mulher se desnuda, em + de quatrocentas páginas e diz que "renasci das memórias que desfrutei de uma infância solta, enraizada nos parâmetros éticos espirituais junto à natureza", ou "na infância está a memória arcaica, nossa tatuagem profunda" (pgs. 41 e 46, respectivamente).

Recomendável para amantes de livros.

fotos: 
Lina do Carmo (acervo L. do Carmo)
Lançamento do Livro (acervo Thea4Set)

2 comentários:

  1. feliz pela dança ganhar mais uma grande obra, e pelo fato de essa obra preencher um espaço gigantesco na formação e fonte de pesquisa pra dança. Obrigado Lina.

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