sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

mito de Ícaro

o decaído Doralice
por maneco nascimento

"(...) deu quatro passos para trás e num impulso só correu novamente, e correu tão forte que seus pés não mais sentiram o chão, criando asas no espírito que foi amornando ao transpor-se na queda, em que caía, caía e caía. Caiu para sempre, sem nunca conseguir chegar ao fim. Enquanto isso, viu as cores das tais luzes em diferentes nuances e a natureza lhe apanhar com agudos braços chorosos intermináveis vezes, como se o seu parto fosse um sempre. E, as suas asas, em centenas de anos longínquos, foram se desmanchando em faíscas, gastas de baterem em caminho à infinitude." (Trajano, Vanessa. Doralice. São Paulo: Penalux, 2015. 212 p.)

Vanessa Teodoro Trajano abriu asas a mais uma pérola de sua veia composicional. Desta feita avançou as linhas a romance. "Doralice" a menina suburbana que vê seu mundo, sonhos e perspectivas ganharem rumos que jamais imaginara e conluir ao ressecado da alma que, à força da intuição humana, pedia melhor sorte.

(Doralice, de Trajano, recomendável)

Assim corre a vida da menina, em Silvânia, subúrbio de terras serranas de Sonhança. Dora, amparada pela avó, Aparecida, e criada pela pena de Trajano, para nalgum momento da própria existência comum confrontar-se na escolha mais difícil, de saltar ao "indefinível", liberar-se do espírito inquieto.

Vanessa constrói uma narrativa eficaz, curta e afiada, de capítulos enxutos em que o coloquialismo rebuscado, dos primeiros momentos, vai perdendo o vício de composicional textual, com riscos de formal, e libera-se para enredo de vida natural, até atingir no ápice da história contada um quase despretensioso de beletrismo. As contas enredadas, à vontade, deixam a liberdade criativa da autora correr leve e eficiente.

(intrínseco diálogo entre as mulheres, a da autora e a da personagem/divulgação)

A menina diferente, das primas orfãs com quem convive na infância, também tem sonho de Borralheira mas, anti-heroína, acaba, mesmo quebrando o determinismo, sujeitar-se ao emparedamento da sorte  que lhe coube, como salto de existência e queda para o alto.

Da queda para o alto, o abismo da licença profética, de manutenção da própria sorte,se afirma como távola de redenção. Num intertextual de mito de Ícaro, o que voou mais alto que Dédalo, as asas mortais perdem-se em faíscas ao quase contato com a luz da salvação.

E despenca à terra de decaídos, na busca de novo passo às asas pedidas, caso haja essa solução, fora da recuperação das energias da luz primordial. A Doralice, de Trajano, mesmo sem muita consciência, é corajosa, determinada e sempre dona da própria escolha. O livre arbítrio se preserva até o fim do novo começo.

De sonho de Cinderela ao fardo de Ícaro, o drama em tragédia anunciada, nos comentários da personagem-narradora, vai ganhando eixo de boa condução da narrativa. História contada em terceira pessoa. A pessoa da personagem. que abre dialogismo humorado com leitores, quebra o protocolo linear narrativo, brinca com humor e liberdade criativas à lição machadiana.

A escrita de Trajano alinhava expectativas, pelas mãos da personagem-narradora, e revela/esconde, no calor da criação textual, a mora de Doralice.

Em animismo, durante o correr da história, por exemplo, Dora abre a previsão da própria queda, mas a licença poética da pouca compreensão da personagem nada expõe nem a ela, nem aos leitores curiosos que mantêm os olhos na trama.

"Doralice" alça Vanessa Trajano, definitivamente, ao círculo de criadores de boa literatura. Entra no circuito de autoras brasileiras de expressão piauiense, também em prosa, já que poeta.

E, lega aos caçadores de boas leituras uma revelada arte de cumprir arte de escrever.

Filtra temas de memórias cotidianas e reinventa-se ao cunho de criar boa literatura, sem precisar perder o já exercício sincero de compor histórias, em franca expansão das letras ficcionais.

Leitura recomendável a todas as ideias.

fotos/imagem: (divulgação)

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