domingo, 29 de julho de 2012

Triângulo das calças compridas


Triângulo das calças compridas
por maneco nascimento

A Miramundo em Repertório - Conexão Nordeste, apresentou dia 28 de julho de 2012, e repetiu dia 29, às 20 horas, no palco do Teatro Municipal João Paulo II, o projeto crítico reflexivo a partir de observação das chagas sociais e vivências ao coletivo da cena expiada. Sua versão para violência doméstica e seus desdobramentos tomam força dramática em “História de todos os Dias”, com texto e direção de Michelle Cabral.

O espetáculo se fortalece na luz do revela, esconde os recortes dramáticos selecionados para contar o tema das três personagens narradoras do enredo. A criação de luz é de Nina Araújo e a operação da iluminação de Thyago Cordeiro. Os claros escuros do drama apresentado vão delineando as sombras da violência e os lapsos de clareza que surgem para memórias de dores, baixa estima e labirintos do esquecimento. O melhor desenho da dramaturgia de “História de todos os Dias” passa pela luz.

O espetáculo inicia-se com atores em vestimentas neutras e na prática de exercício de relaxamento preparatório para a densidade do que vão apresentar. A cenografia composta, araras em que as personagens narradoras vão buscar elementos (adereços e figurinos) para ilustrar o contador de história da vez. O triângulo das personagens narradoras varia para memórias infantis de calças curtas e outras adultas às de calças compridas.

Os intérpretes Fátima de Franco, Heriverto Nunes e Ricardo Torres dividem as ações mapeadas em que ora são de opressores, outras de oprimidos. As brincadeiras, canções de rodas e cirandas infantis também definem a linha divisória entre as memórias infantes e as adultas. Há uma carga denso-interpretativa e lingüística seja de quem narra, seja de quem representa o teatro discursivo e quase panfletário e imagético feito à cena.

A dramaturgia, de imagens coreográficas e composicionais, tem apelo forte em que os corpos falam + tênues aos tempos de silêncio. O paradigma é quebrado quando surge o texto e elementa outros contextos para mesma variação do tema. Há momentos em que Fátima de Franco destaca-se em sóbria violência testada, noutras submete a personagem a encolhimento pertinaz do violado.

Heriverto Nunes desliza entre o cabra marcado para bater e o cabeça da fila na liderança de brincadeiras. Os tempos em que divide personagens infantis com Ricardo Torres e Fátima de Franco talvez enfraqueçam a construção. Aliás, esse é momento que, por vezes, há uma baixa das interpretações.

Algumas personagens narradoras crianças parecem construídas da maneira + fácil. Surgem na forma de caricaturas infantis, com vozes e trejeitos que quase nunca repercutem o real daquela idade, parecem apresentar deficiência fonolinguística e retardo de discurso inteligente, mesmo em contexto de “pobres” crianças violadas.

A dramaturgia literária de Michelle Cabral, uma denúncia da cultura da violência, presente desde as brincadeiras infantis até o + rígido colapso de memórias de exceção, de perfil do regime governamental brasileiro da ditadura. Discurso chocante, não poderia ser apolítico haja vista tratar-se de histórias contumazes, fatos em drama cultural nacional, para qualquer viés socioeconômico.

A cenografia da gaiola dos “loucos desviados” sociais, um símbolo muito forte da prisão que vai encolhendo, como reflexão do inchaço de presos nos cárceres brasileiros. Brinquedos torturantes, fantasias e drogas, lúdicos invertidos apresentam o enredo para conflitos que mordem o calcanhar de heróis e de pessoas comuns, até criar espécie de identidade com a cena posta.

A pesquisa de sonoplastia, assinada por Diana Mattos, equilibra o tenso do exposto e desmitifica o denso da cena dramática. “História de todos os Dias” pode até parecer distante de qualquer realidade que conhecemos, por transferir-se ao palco na forma de jogos dramáticos, mas está + presente no cerne de qualquer um, negue-se ou aceite-se como fato dado.

É história de todos os dias. Reprodução de contextos sócio-culturais que, por vezes é empurrada para debaixo do tapete. E pesa como armadilha em triângulo de calças compridas, no país maravilha.

2 comentários: