sábado, 10 de junho de 2017

Bem vestido

de Leitura rara.
por maneco nascimento
 [Na sobrecapa do livro O sol e o peixe, de Virginia Woolf, lemos em boa reflexão que não traz assinatura, escrita, provavelmente, pelo tradutor Tomaz Tadeu: E as nossas memórias? Como se formam? São realidade ou ficção? Retratos ou borrões? Um rosto refletido num espelho cristalino ou cacos coloridos num caleidoscópio? Que tem o lembrado a ver com o visto, ouvido e sentido? Que ruídos e interferências, mutilações e próteses, perdas e deformações desfazem o frágil elo entre o vivido e o lembrado? Não é sempre invenção o que chamamos de lembrança?(...) Lembremo-nos de que, segundo Ferreira Gullar, "a arte existe porque a vida não basta" (...)] ('Joca Oeiras e a Construção da Memória'. Brasília, dezembro de 2016 IN apresentação de "O Terno e o Frango... e outras lembranças recorrentes", pags. 13 a 17, por Edmilson Caminha)

fotos/imagem: (cidadeverde.com)

O prato principal do menu, Leitura.
O enredo, memórias e histórias que intangem segredos do passado presentificado como Obra de arte e literária à feição de material de muito boa monta. Livro, arte, palavra escrita, memória descrita, tempo de lembrar e, jamais esquecer. "O Terno e o Frango...", de Joca Oeiras.

Uma escrita recheada de sinceros sentimentos e pessoais. Textos concisos, capítulos enxutamente aplicados à boa técnica do escriba da pessoa escritor que se nos dispõe de dividir suas memórias e "baú de ossos". Das delicadezas em aplicação literárias e as (in)delicadezas e (in)confidências reveladas, sem qualquer remorso, ou reserva, pois que nada que possa indevidar o objeto que ganha sabor de muito bom exercício de leitura.

Do pai, [(...) Meu pai, aparentemente o mais sensível de todos, desenvolveu uma relação de absoluto (e um tanto absurdo) respeito pela mulheres. Mas se conto uma série de fatos que desabonam a imagem dele perante a minha própria pessoa, é justamente porque, no atacado, suas atitudes eram, como minha mãe sempre procurava ressaltar, fundamentalmente boas e justas. E eu gostava (e ainda gosto) muito dele e, na realidade, só lamento que ele nunca tenha podido, como faço agora, ajustar contas com o seu 'baú de ossos' (...)] (Oeiras. Joca. O Terno e o Frango... e outras lembranças recorrentes. Oeiras. Fundação Nogueira Tapety, 2017. 260 p.)

Da família de educação sentimental,
determinante, e, política, de expressão social do contexto de construção das cidades invisíveis e das visíveis no eixo São Paulo e a história social brasileira que marca governos, manifestação política, sociedade e recorte das melhores lembranças no limiar da história oral, que perpasse por Analle, e repercuta escafandrar a própria história e (re)contar história da construção memorial de Joca.

Da avó Bebeia, [(...) Nos últimos anos de vida, apresentava arteriosclerose. Suas alucinações, no entanto, nada tinham de depressivas. Era muito divertido vê-la surtando. Num balão de oxigênio vestido com um pano azul, viu, certa vez, uma mulher estranha olhando para ela.
- Qu'est-cette femme? Elle me regarde, disse para mim, baixinho, em francês, naturalmente, para que a tal mulher não entendesse (...)] (Idem. pag. 51)

As personagens da vida e da história,
do universo em derredor da família de Joca, marcam espaço ao tempo de Getúlio Vargas, o Partido Comunista Brasileiro, Luiz Carlos Prestes et al, e a militância política de esquerda familiar, entre outros dados ímpares, desse enredo recortado por Oeiras.

Da inconfidência  de tabu familiar, a história da avó paterna e "adultera", [(...) Já disse em algum outro lugar que só fiquei sabendo por ela de Otávia, minha avó adúltera - Beatriz falava, eufemisticamente, "acusada de adultério" - depois da morte de Papí (1903 - 1964) (...) Logo depois da morte do meu pai, isto é, depois de tomar ciência da história da vovó Otávia, ainda era, talvez, factível, buscar notícias do paradeiro dela... soube que o amante dela era um padre e houve quem dissesse que eles tinham se mudando para a África...] (Idem. pag. 46)

Da educação materna de avó,
entre outras pérolas, [ Eu devia ter uns dez anos quando entrei em uma briga  com um vizinho. Era maior que ele e bati mais do que apanhei (...)  A mãe, vendo o filho lesionado, bateu lá em casa para reclamar de mim para a minha avó. Depois que a mulher foi embora, minha avó me chamou, perguntando:
 - Por que você brigou?
- Ele me chamou de veado!
- Não precisava brigar por isso - disse ela - chamasse ele de urso ou de tigre...
Comovente ingenuidade!] (Idem. 52)

Da polícia política da ditadura sessentona, [(...) Num segundo depoimento, foi-lhe perguntado acerca do envolvimento do meu irmão, Antônio Mendes de Almeida Júnior, nas atividades subversivas do PC. Ao negar este fato, meu pai foi surpreendido por uma foto do meu irmão num curso de formação política ministrado pelo conhecido físico Mário Schenberg. Queriam que meu pai levasse meu irmão para depor. Meu pai e minha mãe resolveram que não haveria essa "levada" para o Dops (...) o médico poços-caldense Dr. Geraldo de Paiva, casado com a Ana Maria, irmã caçula de Beatriz, acolheu e, mesmo, escondeu o Paxá em Poços (...)] (Idem. 162)

Sobre escrever o livro, o autor revela
[A grande motivação que me fez pôr mãos à obra que você poderá ler nas próximas páginas foi, sem dúvida alguma, a descoberta que fiz da relação homoafetiva vivida por Beatriz, minha mãe, e sua companheira Mariúcha nos últimos 25 anos da vida dela. Então, não consigo ver sentido em manter qualquer suspense em relação a isso. Esse resgate emocional me é muito caro e o amor das duas amigas, cada vez me convenço mais, pode e deve figurar nas mais belas páginas da literatura romântica, exageros de filho e autor, obviamente, incluídos (..,)] (Idem. 20) 

"O Terno e o Frango... e outras lembranças recorrentes", de Joca Oeiras, um deleite de leitura eficaz para escrito definidor e imperativo de todo exercício de práxis criativa, com coesão e coerência, à eficiência de recepção, e com uma dose delicada de humor infactível. Leitura recomendável para quem exercita memórias e histórias da construção social brasileira.

Um doce deleite e um raro momento de imergir na pessoa das pessoas de Joca Oeiras e no delicioso devorar do menu - a la brasileira literária - que o autor nos apresenta.

6 comentários:

  1. Sensacional e sensível relato de memórias riquíssimas e recheado de sagacidade e bom humor: este é, pra mim, o tempero principal deste prato chamado de o Terno e o frango :)

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  2. Sensacional e sensível relato de memórias riquíssimas e recheado de sagacidade e bom humor: este é, pra mim, o tempero principal deste prato chamado de o Terno e o frango :)

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  3. Querido Maneko: Como bem lembrou o professor Wellington Soares, depois de publicado. o livro não mais pertence ao autor e sim aos seus leitores e em acrescento que é. para mim, muito gratificante saber de leitores sensíveis como você. Obrigado!

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  4. Acho que posso resumir: você matou a cobra e mostrou o pau ou, se preferir, vestiu o terno e comeu o frango, rsrsrs.

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