segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Sangue irmão

teatro adentro
por maneco nascimento

Um dos últimos espetáculos acompanhados, por mim, no Festival de Teatro Lusófono - FestLuso 2016 - Ano Júlio Romão, veio de África. A cena do Núcleo Experimental de Teatro - NET (Núcleo Criativo e Fundação Sindika Dokolo/Elinga Teatro), de Luanda, Angola, fez-se luz teatral na noite do dia 27 de agosto, sábado, às 20h30, Theatro 4 de Setembro.

Sangue irmão, norte familiar adentro, decorre para as discussões intrairmãos, paternidades divididas, encontros e desencontros sob o mesmo teto, e um mais de conflitos que queimam a epiderme da convivência entre Morris e Zacarias, os nascidos do mesmo útero, mas não do mesmo dna paterno.

É nesse ambiente dramático que os meio irmãos convivem a cotidiano de adoção amorosa e "ódio" de estorvamento pela impositiva presença de um sobre o outro, ligados por laços de sangue.

[A peça foi escrita no contexto sócio-político sul-africano do apartheid, contudo aborda um tema transversal a todas as épocas e sociedades.]

Texto adaptado do original de Athol  Fugard, "Laços de Sangue" recebe assinatura de adaptador, por José Mena Abrantes, que também dirige o espetáculo.  A direcção de actores é de Rogério de Carvalho, que implementa uma cena de método de variação sobre o mesmo tema e, a cada nova variação, um adicional dramático, que acusa o mapa aos desenhos dramatúrgicos que identificam, ato, ator, método e direcção de cena e intérpretes.

Os atores, Meirinho Mendes e Raúl do Rosário defendem as personagens jornada norte adentro dos conflituosos encontros repetidos, na relação familiar de sangue pagão e nobre mestiçada. Geram conforto na apresentação de suas apreensões e radicais discursivos emblemáticos, de corpo em cena, numa cartografia ambiental corriqueira e usual, a que os actores se mimetizam, ao natural da ambiência, e giram o tranquilo de expressões singulares e econômicas, às vistas de teatro deslocado do dramalhão.

O desenho de luzes (Jorge Ribeiro) enquadra a força das narrativas, em seus vais e vens de cotidiano banho-maria, e emblematiza traços de claros e escuros e arrisca, no menos, um + para marcas sutis de aquecer a aura das personagens e valorizá-las como sujeitos da cena.

A sonoplastia, de Sebastião Delgado, cumpre licença da companhia corrente de dobrar pequenos sinos a quem dorme e acorda, como num delay, ou dejavu do algo que se nega e não se pode negar, pois o sangue pagão fala sempre.

Alex Kangala criou guarda-roupa (figurinos) que estão em compleição de separar o joio de primeira linha, do da segunda linhagem. E, na pespectiva dialética, veste bem, apresenta as personagens em suas diferenças e igualdades e define "poder" e despoder na vestuária que imponencia a um e mantém dignidade a outro.

Não gera, em quem os veste, qualquer desconforto, nem sobrepele infuncional. É uma segunda pele para proteção e vigor de ostentar, em cores sóbrias, identidades funcionais de aproximação de matizes que imbriquem afins de pele, cor e irmandade negada, ou confirmada.

O material humano regurgitado na folha de racismo, mitos de democracia racial, aparentes invisibilidades da questão racial, propriamente, vem em chafurdar na vozes e falas das personagens presas a laços sanguíneos e, inteirizam na extensiva ação, propositada, de voltar ao mesmo ponto do relógio, o marcar tempo de despertar da assistência, germinar um sentido reflexor, na recepção que acompanha o dia e noite, de Morris e Zacarias, em conflito surdo.

Meirinho Mendes e Raúl do Rosário, brincam de fingimento sério e, na técnica desprendida do drama factual, apresentam com clareza e classe particular, de cada um, a tragédia humana aliviada, nos intercursos de realidade e naturalismo, com alguma perspectiva brechtniana de inferir referências intrínsecas, na construção da cena, e mover-se em, talvez, influências invazias de metodologia da práxis teatral universal que a todos abre canais de apropriação.

Há na dramaturgia à cena (Abrantes), direcção de actores (Carvalho) e ato de conspiradores da e na cena (Mendes e Rosário) uma franca cumplicidade, na arte do fingimento e na persuasão cênica pelas estéticas e linguagem aplicadas, a remexer o sangue e aquecer laços que se nos põem no lugar comum, de mesma pátria, cor, nação, etnias e princípios humanos de romper conflitos, mastigando-os e imprimir regurgito de soluções, também humanas, que se colhem das falhas trágicas das personagens para roteiro de ficção, ou de vida real refletida.

Salvo, o extenso da repetição da repetição, que se nos leva ao princípio do exercício do exercício teatral, à lição de cor, aprende-se a apreender o teatro que fala, por si mesmo, e imprimir "Laços de Sangue", em toda a recepção presente.

fotos/imagem: (divulgação)

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