sexta-feira, 12 de abril de 2013

Paixão segundo C.L.


 Paixão segundo C.L.
por maneco nascimento

Uma mulher para amar, porque fiel a si mesma, a sua escrita, ao ser humano e a busca constante da paz do encontro consigo, com Deus e com os seus, não necessariamente só os de convivência doméstica, mas de todos que alcançasse com os olhos e sensibilidade solidária da escrita, cunhada com amor e necessidade vital de escrever e refletir a vida e o mundo em seu redor. Assim nos legou Clarice por Clarice.

Uma artista apaixonada pelos detalhes, apreendidos pelo olhar afinado em razão e sensibilidade à expansão de afoguear o outro, com sua energia, atomizando verdades e sinceros relatos das personagens de si mesma, de quem não quis calar-se e tornou-se um das + representativas autoras da literatura nacional. Do requinte, exercício da palavra, na difícil língua portuguesa, laborada para estar + perto do ser de “ser o outro dos outros”.

Suas falas, através de rica prosa, nos dão as falas das Clarices da Clarice Lispector que, aqui em Teresina, foram trazidas à vida, desta vez na cena, através de Beth Goulart, em“Simplesmente Eu, Clarice Lispector”, na curtíssima temporada, no Theatro 4 de Setembro, dias 10 e 11 de abril de 2013, às 20h. Para ritos e fora dos ritos, Clarice para Beth e Beth em Clarice, numa inesquecível apresentação para público concentrado e respeitoso em ouvir a autora em suas intervenções da “personagem de mim mesma”, como se definia.

(A Clarice de Beth/fotos: divulgação)

“Simplesmente Eu, Clarice Lispector” se instala na economia, de silêncios e ruídos de se fazer ouvir, em refinado de cores sóbrias do cenário, mescladas com outras de quentes detalhes e destacáveis, por vezes, dos figurinos charmosos de Beth Filipecki. O que parece esvaziar, ou melhor, neutralizar o cenário, preenche-o de presenças das linhas, entrelinhas e para além das linhas descritas na escritura claricelispectinianas.

O cenário (Ronald Teixeira e Leobruno Gama), de cortina em semilua que recorta e define o espaço de enredo das personagens e autora. Cortina, de cor branca, fragmentada em fitas que revelam e escondem a contrarregragem do teatro e magia representados e, na licença poética, redomam o sentimento do mundo das personagens e, ora são chuva, ora são a floresta em suas naturais sonoridades do Jardim Botânico. 

Complementam a cenografia limpa, um divã à direita, frente cena, conjugado com uma mesa de cabeceira (escrivaninha ou criado mudo); um “puf” (banco do Bondinho), fundo cena e uma poltrona, frente esquerda cena (espaço à entrevista coletiva à imprensa). Tudo em cor sóbria, mimetizando-se com a redoma, ao fundo, cortinada. Elegantes elementos cenográficos acompanham toda a estética revelada que impõe, somente, a presença das Clarices espiadas.

A iluminação, do piauiense Maneco Quinderé, fala por si só. Recorta, com sabedoria e delicadeza de matizes, os claros, escuros, as “penumbras” do espírito inquieto da mulher, que rompe o blackout, com a luz própria, da sempre exercitada hora da estrela. Caminhos desenhados, de luz, na geografia de filamentos frios e quentes, sem exacerbos de virtuose técnicos. + sensibilidade consentida e conspirada a universo já tão preenchido de lampejos inabaláveis de poesia em prosa rigorosa e simples do cotidiano traduzido.

A concepção, direção e atuação de Beth para Clarice, um brinde à felicidade da cena. E, se Deus não fosse invenção humana, como sugere a autora, também não se poderia deleitar-se com cena tão primorosa, já que também de invenção de artista do palco. Uma elegia ao texto literário, uma epifania à personagem construída da personagem feita objeto de reinvenção e releitura do real imitado. Dramaturgia apaixonada, mas nunca de fé cega. 

As coreografias e premeditados gestos (direção de movimento de Márcia Rubin), mímesis da paixão segundo C.L. à natureza humana, também presente em si mesma. A trilha criada por Beth e composta por Alfredo Sertã, em inspiração de Eric Satie, Arvo Part, Debussy e Lalo Schifrin, bela partitura, de especial melodia sentimental, na representação.

Aprimoram a narrativa, na estética de efeitos técnicos, o visagismo das fotos, de Rose Verçosa e o visagismo do espetáculo de Westerley Dornellas. As fotos de Fabian e de Lenise Pinheiro se representam bem. Fecha o ato técnico com Amir Haddad (supervisão de direção).

Beth Goulart não poderia estar + à vontade, pois revela sua paixão, desde cedo, pela autora e suas falas sociais, tão de identidade de qualquer um(a) que tenha topado nas linhas escritas por Clarice.

A atriz carrega consigo, num respeito de ritos, os sotaques das mulheres (preparação vocal de Rose Gonçalves), na mulher que se expõe, pela escritora sincera e honesta, a posterizar a mulher com suas falhas, rotinas, falas, medo, temores, amores, religião de negação e aceitação de Deus que nos povoa a todos. A paixão segundo B.G., um sincero elogio a mulher feita Clarice.

Do amor, à primeira vista, a atriz reitera calor, na dramaturgia desejada e feita obra, e contempla leitores e até aqueles que apenas conheceram Clarice, através de Beth Goulart, com um festejado talento de apreender, sem ofuscar obra e autora. Só corroborar a deixar + clara e cristalina a arte, em falas sociais, da paixão segundo Clarice Lispector.

Da personagem de si mesma, na voz de Beth Goulart, três pontos que definiram bem a artista e sua obra legadas à posteridade, mesmo que não buscasse tal posteridade, “amor aos outros, escrever e amor aos filhos”. E explica. Não amar o outro, a tornaria pessoa menor, mas amar os outros é ato necessário e inerente a si mesma. Escrever necessidade inegável, mas falha, porque nalgum momento, poderia desistir de fazê-lo. Amar os filhos, questão de dentro de própria natureza do amor contido nela.

(a Beth em Clarice/fotos: divulgação)

A Beth de Clarice, um luxo em ato sublime de uma à outra e da outra a uma. A Clarice de Beth, maturidade confirmada em fé religiosa, de dramaturgia espelhada na ciência do teatro. Da atriz à personagem (autora) e às personagens de alterego(eu literário), um confronto de arte, compreensão e entendimento de manifestar ato humano pela estética do fingimento. As mulheres, Delas, mergulhadas na humanidade de cada uma e, emergidas do fundo “Perto do Coração Selvagem”, para deleite do público fiel.

Ao final do espetáculo, a atriz agradeceu a energia da plateia, àquela noite, que possibilitou repetir o prazer de interpretar, + uma vez, Clarice Lispector. Ainda falou de perdão, de relações humanas, de prestar + atenção ao outro, à solidariedade, à educação aos filhos e respeito ao professor, falou de leitura, da nossa rua, nosso bairro, nosso mundo, do planeta que nos acolhe e fechou em lição de perdoar os outros, antes nos perdoarmos a nós mesmos, para se chegar ao divino.

Nem de longe, esteve fora do discurso da autora, contemplada esta com a experiência da atriz que também ama, segundo Clarice Lispector. Em epifania da personagem, durante um momento de narrativa dramática, a atriz/personagem repercutiu cantos de “Salmos de Davi”. Fora da cena, as falas da atriz reforçam o amor também de Beth, em reprodução da Paixão segundo C.L., pela humanidade observada.

Simplesmente Eu, Clarice Lispector”, senão um dos + expressivos monólogos da memória do teatro nacional, será um dos + significativos projetos vistos que envolvam literatura, em prosa, traduzida à cena sem prejuízos para intérprete, nem autora. Bravos!

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