segunda-feira, 14 de maio de 2018

Diário da Caverna

um tango Piazzola
por maneco nascimento

Quando os deuses percebem os pés de barro e passam a olhar mais para si mesmos, talvez, mas só talvez, passem a desviar o olhar dos mitos fugazes da caverna em que aprenderam a antever, como lugar de conforto, o que na verdade seria uma queda livre para poço imaginado como sem fundo.

Dos entulhos de outono, dos abarrotados das passagens de estações e dos tropeços sentidos para emergir das próprias sombras é que se faz a licença poética, em dialogismo com Música e textos-memórias confessionais, alinhavados à recuperação da razão, desviada, em febre terçã, "À Flor da Pele" - o espetáculo.

A cantora Zizi Possi, senão uma das + poderosas intérpretes da MPB e temas latinos de radical familiar romanos, é também das veias de atriz. É o que se fez provar no espetáculo, em que dialoga numa imersão da própria experiência de despressurizar velhos deuses e motes perdidos de paraísos fatais e reivindicar saúde, quando reinventa-se na fuga da experiência de depressão, tema expiado na narrativa poética do espetáculo dirigido pelo irmão José Possi.

Num tecido peculiar dramático, sutil e, inteligentemente, bem afinado, a direção de arte de cena de Possi, deixa a irmã e cantora bem à vontade para contar sua história e cantar, com uma singularidade só sua, a volta a seu repertório brilhante, feito papel original à escrita da Canção Brasileira e trazer com muita acuidade artística a novo pano de fundo, o Teatro, os compositores que tão bem a fizeram cantar um Poeta.

Desfilam, na narrativa-canção confessional, dando mais liga na emenda e revalorizando o soneto, os/as Poetas Chico Buarque de Holanda, Gilberto Gil, Rita Lee, Chico César, Gonzaguinha, entre outros + das vias de compor a partitura de desmorte e redenção da nereida de "À Flor da Pele" - o espetáculo, este que a onda da emoção e memória, como mito do eterno retorno a coração despedaçado, traz por duas versões obra do Chico Buarque que nomeia o espetáculo.

A Flor da Pele, a canção de Chico, sanduicha o espetáculo e, ao final, numa versão tango Piazzola, marca o quente coração selvagem da Poeta-cantora, que viveu o inferno de Dante na caverna do próprio demônio interior. Final quente orquestrado por um acordeon e um cordas de aço, na mimesis musical de um Astor argentino por natureza latina, retira de vez a personagem dramática do escuro das memórias de solidão da mente deprimida e a alça, anjo decaído, à redenção das Luzes.

A direção musical que se ampara no vértice instrumental de um piano, um acordeon Piazzola e um cordas de aço dão o ponto no doce. A trilha original ao vivo aquece a cena e amplia o tete-a-tete da energia maior contida entre a ação, o ato, a palavra, a música, a canção, os músicos, instrumentos, os Poetas, os músicos, a Intérprete.

Numa cenografia que varia entre visagismos da linguagem tecno das novas tecnologias direcionadas, definem pano de fundo para realçar e interagir no diálogo direto da personagem de si mesma, vivida e saltada da realidade para o lúdico, por Zizi Possi. Na espacialização + direta de contrarregra cenográfico um sofá/ostra de Afrodite e um praticável em que descansa e conta sua tragédia interior.

Seja no descanso da deusa vencida[sofáOstra], ou no visagismo de um caminho de luz cortando o céu[Apolo em sua carruagem de fogo definindo o dia e a noite], as narrativas imagéticas e sígnicas dialogam com deuses mortos, misto de mitos naturais do inconsciente coletivo, arquétipos representativos no véu de memórias reproduzidas na cenografia do espetáculo.

O figurino da atriz-Cantora, simples, em luxuoso de apresentação de deusa, arrastando vestígios de poeira das energias de que se fazem mortais e que, naturalmente, despendem ao mover-se, seja em terreno seguro, seja em margens pantanosas das memórias regurgitadas. Vestuário quase vestal que abriga aproximação em [ir]real, ou efígie metafísica representada na suspensão do enredo.

A iluminação, metamorfoseada com o visagismo das imagens projetadas, amplia o olhar da recepção e expia a parede descascada da memória; o entulho de outono no amontoado de folhas secas de eternas estações[+ cenografia definida]; uma talvez lua sem São Jorge e enviesada, ou portal de observação, espelho opaco por onde passam as imagens de si mesma, feito desvios, ou reenvio de mensagens em expansão do universo a ser descoberto. A luz reinventa as imagens e reitera o discurso da alma partida, Estrela em locomoção rumo ao primordial do sol do interior.

Por +, o texto de memórias da casa faxinada, pelo simples de contar a própria história sem recurso de querer ser Pessoa, ou Drummond, nem Graciliano, mas só Poeta das próprias dores, cumpre bem o seu papel. A direção do espetáculo usa da sagaz inteligência dramática para "impor" Zizi nas vezes de atriz e, no pulo da Gata, caliente em teto de zinco de Teatro, a faz valorizar o que + a faz tão bem, que é cantar.

E cantar Possi faz muito bem, obrigado. Dos solilóquios aos atos de grandes Canções sentidas e paridas ao sabor dramático de convergir memórias, dramas, histórias da vida como ela é e sem querer negá-las, Zizi fica tão grande feito Dulcina, Bibi, Fernanda, Pêra, Laura, et al, enquanto canta, sua melhor e maior arma de conhecimento ao "decifra-me ou devoro-te".

Em "À Flor da Pele", o espetáculo e também na Canção Buarquiana, sem desmerecer todas as outras interpretadas por Zizi[como nereida domando marinheiros], a artista encantou toda a assistência e não houve quem não quisesse mergulhar no mar desenhado pela dramaturgia construída pelos irmãos Possi.

O que se vê, ouve e sente durante uma hora e vinte de espetáculo, é um ato de fé ao drama da Canção e licenças poéticas acertadas, uma epifania aeda trazida à tona, vinda do fundo do lago escuro da memória de recuperação da Estrela que sobe e se assegura ao campo de proteção que Deus, para quem acredita, pode permitir alcançar.

O entulho de ossos revirados, a alma partida e reajuntada feito o milagre de Prometeu, dá a garantia de novo fígado à personagem e o amargo da boca é expelido na voz, no canto, no corpo da personagem, na pele e suor que dado aos mortais, no viver "À Flor da Pele" e poder contar a história com distanciamento e feitura épica de reinventar-se + outra vez pela arte.

Parabéns, irmãos Possi. Ficamos todos À Flor da Pele.

fotos/imagem: (marcelo cavalcanti de medeiros)

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