sábado, 15 de julho de 2017

Música em suspensão

sinos Vermelhos também dobram
por maneco nascimento

Para quem só se acostumou a conviver com os noticiários filtrados e decantados, à época, embora com algumas versões que quebrassem os paradigmas dos porões (in)evitáveis, mesmo com toda a escafandria possível de ser posta em prática, aqui nesse biografia romanceada, ou romance biográfico, como queiram, se encontram novas luzes. 

Nesta Obra “O Ruído do Tempo” (Julian Barnes) segue + um sinal de como cada recorte histórico e de memória abre um novo olhar e reflexão sobre a ditadura Vermelha da URSS, em seus tempos de Estado e Poder proletário.

Outras Obras já abriram luzes, com detalhes delicadamente sórdidos, sobre o mundo de Lênin, Trostki, Stálin e todo o aparato do poder central da Revolução de outubro de 1917. 

“Os Filhos da Rua Arbat”, de Anatoli Ribakov (trad. do russo de Paulo Bezerra) é outro muito bom exemplo dos tempos das guerras internas do estado socialista; da externa e fria que nos chegava d’alguma maneira. Os meandros + indiscretos, só Obras como as citadas, entre outras preciosas e indispensáveis, puderam revelar ao mundo o mundinho da ditadura do proletariado.

E, até que se chegasse a essas informações, muito anônimos foram “necessários” desaparecerem à consolidação do poder vermelho daquele império mujique, reinventado e, muitos notórios também desapareceram das memórias e inconografias fotográficas do contexto, em mudanças dinâmicas de manter o Poder Central.

[Cometera um enorme erro ao compor Lady Macbeth de Mtsensk, e o Poder o havia castigado adequadamente. Arrependido, compusera uma resposta criativa de um artista soviético à crítica justa. Depois, durante a Grande Guerra Patriótica, tinha composto a Sétima Sinfonia, cuja mensagem de antifascismo ecoara pelo mundo. E então, estava perdoado.]
(Barnes, Julian. O Ruído do Tempo. Trad. Léa Viveiros de Castro. – 1ª. ed. – Rio de Janeiro: Rocco, 2017. 176 p. [pag. 76])
O autor Barnes se enfronha, em parte na autobiografia terceirizada e em histórias bem documentadas sobre o músico leningradense Shostakovich e enriquece, afiadamente, um misto de ficção e história, e avia arte ao especular “sobre o que se passava na cabeça do compositor”, declara Arthur Dapieve na apresentação do livro.

De Julian Barnes se encontra um texto direto. Eficiente. Estritamente impecável e dentro de uma técnica de escrita reta, pragmática sem excessos, nem verborragia, ou gorduras para enfeitar a sua realidade artística ficcionada à realidade prospectada na vida de Dmitri Dmitrievich.  
Capítulos/Períodos curtos e indispensáveis. Enredo que não guarda qualquer dúvida para se voltar à página anterior. Está escrito e desliza na medida certa, desde o primeiro título de capítulo e parágrafo subseqüente ao ponto final da última linha deixada como Obra concluída a este fim, da curiosidade do leitor.

Não há como desistir da leitura, seja porque traz + um novo elemento ao tema e, sob o olhar voltado à arte e a um artista das grandes composições soviéticas que quebraram a barreira do mundo ocidental, mas também porque entre o pessimismo natural da personagem e ao mesmo tempo a falha trágica que seria contrarrevolucionária, está um homem, um filho, pai, criador e tentando manter-se “neutro” no mundo dos mandatários da Revolução russa até que, forçosamente, tem que capitular, filiar-se ao Partido, e desfazer a cortina de fumaça que parecia “protegê-lo”, escudado pela música, das reais obrigações do Estado.

[Se o compositor mais famoso do país podia cometer um erro, esse erro devia ser pernicioso e perigoso para os outros. Então o pecado precisa ser nomeado, e reiterado, e ter as conseqüências eternamente anunciadas. Em outras palavras, “Confusão em vez de música” tinha se tornado um texto didático e fazia parte de cursos sobre história da música. Da mesma forma, o principal pecador não podia seguir um caminho sem supervisão (...) Stálin tinha expressado uma grande admiração pelas músicas que Dmitri Dmitrievich compusera para a trilogia Maxim; (...) A opinião daqueles que estavam no nível mais elevado era que Dmitri Dmitrievich Shostakovich não era uma causa perdida, e era capaz, se fosse adequadamente orientado, de compor músicas objetivas e realistas. A arte pertencia ao povo, como Lênin havia decretado; e o cinema era muito mais útil e valioso para o povo soviético do que a ópera. E assim, Dmitri Dmitrievich contava agora com uma orientação adequada, e o resultado disso era que em 1940 ele recebe a Condecoração Vermelha do Trabalho como prêmio pelas trilhas sonoras que compusera para o cinema. Se continuasse a seguir o caminho certo, aquela seria com certeza a primeira de muitas homenagens]
(Idem. [pag. 76])

“O Ruído do Tempo”, de Julian Barnes, se segue pérolas anteriores criadas, é um livro indispensável de leitura, quer seja por sua bem afiançada escrita, quer seja pelo valor histórico contido na imersão feita na vida em obra do músico soviético e trazer lugares, temas, contextos históricos e memórias esclarecedoras sobre a arte do artista e os meandros percorridos à sobrevivência no mundo de vigiados.

Ser formalista, não ser formalista. Estar entre os (in)suspeitos de contrarrevolução. Compor e manter integridade e manter a vida em serviço do Estado. “ O Ruído do Tempo”, dando-se uma distância, desde que se instalou a Revolução russa, auge, religião socialista, heresia, desvio, decadência e queda da estátua de Lênin, tem-se a certeza que as humanidades são sempre similares, asiáticas, europeias, novamundenses, etc., estão lá para fazer valer seu poder.

O extrato do Poder pode mudar os códigos, particularizar aparatos, formas, fórmulas de aplicação, mas sempre poder. Julian Barnes nos apresenta uma radiografia filigramada do mundo do Estado soviético e suas idiossincrasias mas que, no fim, do mais subordinado ao Comando em Chefe único, todos são falhos, humanos, desviados ou não.

Sempre muito feliz quando me caem às mãos curiosa leitura de Obras como “O Ruído do Tempo”. Recomendável a todas as idades e curiosidades leitoras, especificamente para se manter distância reflexiva acerca dos discursos de poder. Como refletir, salvo as diferenças e aproximações em que se imbricam o poder, acerca do momento brasileiro de uma ditadura de conchavos congressistas e desmandos de natureza humana corruptos.

[(...) Porque, embora pudesse ser paranoica, a tirania não era necessariamente burra. Se fosse burra não sobreviveria. A tirania entendia como algumas partes das pessoas – as partes fracas - funcionavam. Durante anos tinham matado padres e fechado igrejas, mas, se os soldados lutavam mais valentemente sob as bênçãos deles, então os padres seriam trazidos de volta para cumprir a utilidade de curto prazo. E se em tempos de guerra as pessoas precisavam de música para manter o espírito elevado, então os compositores também seriam postos em ação.] (idem [pag. 69])

O ruído do tempo percorre cidades, épocas, governos e dedilha os barulhos, expia a ruidosa efigie dos poderes que, como diz o Poeta, são podres. E contaminam a, quase tudo, e se n'algum momento a tirania exigir amor ao Partido, Estado, ao Grande Líder e Timoneiro, ao Povo padronizado, combata a tirania, ela nunca serve à humanidade livre.

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