quarta-feira, 1 de junho de 2016

Salvados

pelo deus Ex-machine
por maneco nascimento

[Deus ex machina, expressão latina com origens gregas ἀπὸ μηχανῆς θεός (apò mēkhanḗs theós), que significa literalmente "Deus surgido da máquina", e é utilizada para indicar uma solução inesperada, improvável e mirabolante para terminar uma obra ficcional.

O termo refere-se ao surgimento de uma personagem, um artefato ou um evento inesperado, artificial ou improvável, introduzido repentinamente numa trama ficcional com o objetivo de resolver uma situação ou desemaranhar um enredo. O uso do termo Deus ex machina surgiu no teatro grego clássico, no qual muitas peças terminavam com um Deus sendo, metaforicamente, baixado por um guindaste até ao local da encenação, para então amarrar todas as pontas soltas da história (...) Deus ex machina também pode descrever uma pessoa ou uma coisa que de repente aparece e resolve um problema aparentemente insolúvel (...)
A noção de Deus ex machina também pode ser aplicada a uma revelação dentro de uma história vivida por um personagem, que envolva realizações pessoais complicadas, às vezes perigosas ou mundanas e, porventura, sequência de eventos aparentemente não relacionados que conduzem ao ponto da história em que tudo é conectado por algum conceito profundo. Essa intervenção inesperada e oportuna visa dar sentido à história no lugar de um evento mais consistente com a trama. As tragédias de Eurípides eram notórias no uso deste recurso.] (fonte Wikipédia./acesso 01.06.2016 às 09h56)

O Grupo Raizes de Teatro estreou "Os Salvados", na noite do dia 31 de maio de 2016, às 19 horas, no palco do Theatro 4 de Setembro. o espetáculo fez estreia dentro do Projeto Terças da Casa, na versão do Terça Teatro, esta que compõe um dos vértices dos Triângulo do Projeto: Terça Teatro, Terça Dança e Terça Três em Um.
Para a pauta do Terça Teatro, o Raizes trouxe uma releitura de direção ao espetáculo montado, pela primeira vez, no início dos anos 2000, com direção de Siro Siris. Para esta nova roupagem, a peça recebeu mapa de dramaturgia de cena do diretor e ator Wilson Costa. A produção do espetáculo foi realizada por A&C Promoções Culturais.
"Os Salvados" reúne o elenco formado por Ademilton Moreira (o coronel latifundiário), Állex Cruz (o menino Bentinho, filho da Beata), Claudinha Amorim (a prostituta), Fernandes Torres (o sem terra) e Lorena Campelo (a beata Damiana). Cinco destinos presos à sobrevivência da tragédia de um acidente de caminhão (pau de arara) que ia em romaria rumo da cidade de santo devoto.

A luz, de Assaí Campelo, gera um proposta de liberdade de apresentação temático realista. Indiferente, de propósitos, como a adequar-se à neutralidade em nome de dar maior espaço à trama e às personagens, em seus destinos de sobreviventes. No ato do coito, entre a prostituta e o adolescente Bentinho, surge um calor diferenciado da luz, em projeção à ação sensual, revela sem pudores, mas sem efeitos de apelação. Registra fotogramas do nu, em lapsos visagistas de marcar o tempo da relação amorosa e dar cor distinta ao ato do sexo. A luz opera pela simplicidade, tarefa mais difícil quando gera complexo neutro.

A cenografia e adereços, Wilson Costa, compõe a cena-desastre em que se contextualiza o acidente. Nada está em lugar acertado, arrumadinho. Tudo está no lugar do desarrumado para estética de linguística da compreensão imagética e signos do confuso material à confusão espiritual que compartilham as personagens em choque. O desalinho está incorporado ao enredo e pratica marcas de expressionismo trágico, com eficácia de apresentação narrativa.

Os figurinos, também assinados pelo diretor do espetáculo, W. C., e Edith Rosa, seguem a linha enredada do espetáculo. São realistas, como a trama apresentada. Salvo o manto, de retalhos e faixas cosidos e em seda colorido, que veste o menino nu, no momento de devaneio e apresentação do Bumba-meu-Boi, quando quebra o paradigma realista e licencia lúdico feliz (terreiro da memória), todo o resto da manifestação de segunda pele, das personagens, está no limiar do real e, presentemente, apropriado como linguagem, identidade e cultura localizada do vestir peculiar.

A direção de cena e atores, de Wilson Costa, concorre a acertos reais. É direta, como os diálogos do texto de Aci Campelo. Sem meia palavras, nem delongas de variação que fuja do objeto apresentado. É tensa, pragmática e revela atenção intencionada, em contar a história e apropriar-se do calor dos sentimentos diversos e atípicos a momentos das naturezas trágicas provocadas por estado de choque.

Um corte na meada da direção surge, em alguns momentos, em que parece que determinado(a)s intérpretes agem em delay, retardando em tempo a dinâmica proposta pela direção. Seriam pequenos vácuos nos diálogos que perdem a atomização necessária à integridade dos bate e rebate das falas das personagens. Um silêncio que não é de propósitos, mas um quase entregar de insegurança dos encontros nas conversas entre um(a) personagem e outro(a). Vencendo esse pequeno recuo, a dinâmica ganharia vida apropriada na trama aguçada.

Lorena Campelo constrói uma velha tranquila e, delicadamente, afinada ao turbilhão das mortes, súbitos, exasperos, solidariedade em cena e afiada atenção de espaços e domínio do enredo a que está inserida sua personagem. Das súplicas, fé e decepção arroladas à crença da Beata Damiana, a atriz desempenha sutilezas no trágico e dramático sentidos e na morte econômica, quase imperceptível, dentro de toda a trama regurgitada. Conta muito bem o próprio desenredo de tragédias íntimas reveladas até o ápice de passagem realista-naturalista eficaz.

Állex Cruz, com seu Bentinho, detém um dos melhores textos e solos devaneados, à ascensão da personagem, ao mundo de alienação, loucuras lúcidas e efemérides do universo da fé, maniqueísmo, céu e inferno entrecruzados. Cruz poderia ter maior desempenho. Tem às mãos um graal, mas precisa tocá-lo com + fé cênica, orientada pela razão estética e dramática de compreensão do próprio diálogo. Por vezes, o texto fica incompreensivo, perde-se alguns necessários valores das falas que brotam da essência da personagem proposta.

Por outro lado, seu corpo fala muito, tem o ar imberbe da personagem construída e varia impulsos que trazem a recepção a constituir um misto das melhores memórias de anti-heróis loucos, de que se tem notícia. Aproxima identidades que poderiam imergir em, talvez, uma efígie de Antonio Conselheiro, Bispo do Rosário, Gentileza, ou outros andarilhos que perpassem entre o real e o imaginário dos mundos paralelos às crenças, fé, religiosidades e fanatismo de ponto de vista de existência. 

Ponto + limpo do intérprete é o da dança com o manto santo do Bumba-meu-Boi, em que embora nu, o mostra e esconde da personagem, na dança do véu da cultura popular, não traz qualquer apelo de nudez, ou sexualidade chocante. Brinca com os lapsos de claros e escuros que o manto propõe e deixa licença poética, dentro da trama real, e festeja arte e cultura popular acionada na "loucura" da personagem para tratos populares, neste contexto, e também quando recita quadrinhas de repentes.

Claudinha Amorim, na pele da prostituta em busca de carreira com romeiros, apresenta uma mulher que enviesa o drama com sua profissão de sobrevivência e choca os + puristas de dentro e até de fora do enredo apresentado. Às vezes  a atriz peca por gestos estabanados e peculiares da intérprete que enfraquecem a personagem. Mas ambienta humor, pisar firme na cena e desnuda a puta, sem receios de meias atitudes, quando confronta os bons mocismos de contraponto do drama. 

Acuidar em ouvir, + detidamente, a fala da personagem que quebra o sagrado da tragédia, poderia dar melhores nuances e tempo regurgitado aos seus diálogos com os pares da história. Talvez retirar a voz da impostação caracterizada, à personagem criada, apresente + liberdade de revelar a puta cínica e prática que gera ao público. No +, desconstrói e erige uma E(r)va, no paraíso dos romeiros, que desliza feito a serpente primordial, num realismo factual.

Ademilton Moreira, o coronel latifundiário da história, não passa despercebido. Em gestos concentrados e energia direcionada a alguém que sofreu um tiro na perna e passa boa parte do tempo sentado, deitado, ou arrasta-se na conveniência do exigido, cumpre bem seu papel.  A idade da personagem, a voz e economia de sentimentos expressos se bifurcam à composição tranquila e o que, aparentemente, poderia sugerir terreno incauto, ganha contornos de naturalismo direto, em drama realista.

O sem terra, personagem entregue a Fernandes Torres, entra na trama e amplia o enredo como peça chave de desenrolar das tragédias interiores. Num titubear, de primeiras entradas profissionais, o intérprete até perdeu a oração em rosário ensaiado, mas recuperou fôlego de continuidade narrativa. O que poderia parecer falha, virou "déjà vu" das memórias de ensaio da vingança. Tem presença na cena, andeja sem estabanar o terreno sagrado e fecha o quebra cabeça das cinco pessoas que desfiam destinos interlaçados. Soa bem na cena.

"Os Salvados" reúnem origem, história e memória da cena do teatro do Raizes e, particularmente, considero um dos melhores textos criados pelo Aci Campelo. Texto e experiência dos envolvidos criam teatro para ser visto e comentado, gostem ou não gostem. Eu gosto e não nego.

Salvados pelo deus Ex-machine as intenções e propósitos criadores e criativos do elenco, direção e montagem do Grupo, com 39 nove anos de carreira. Também resgatadas, pelo deus clássico euripidiano, as personagens que, a sua maneira e responsabilidade de gerarem a própria tragédia humana, encontram redenção no (des)cumprimento das promessas que foram buscar no caminho de romeiros e fé cega.

Parabéns Raizes, teu nome, tua história.

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