sábado, 2 de março de 2013

Gavetas sociais


Gavetas sociais
por maneco nascimento


“Aqueles Dois”, montagem da Companhia de Teatro Luna Lunera, de Belo Horizonte (MG) abriu temporada no palco do Complexo Cultural do Matadouro – Teatro do Boi, na noite do dia 1º de março, às 20 horas, para público concentrado e fiel à cena construída às vozes de Caio Fernando Abreu, autor gaúcho que doou, generosamente, ao bom receptor o mote artístico para qualificado resultado em dramaturgia refinada e econômica.

Delicado, crítico, político, agressivo, polido, mordaz e, inteligentemente, dono de obra literária muito eficaz, no celeiro da literatura contemporânea nacional, Caio Fernando Abreu emprenha vozes sociais que deliberaram à Cia. de Teatro L. Lunera uma rica e laborada ação para teatros modernos e contemporâneos de cena viva.

Não chegaram a usar palavras como ‘especial’, ‘diferente’ ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros.” (Aqueles dois
(História de aparente mediocridade e repressão/Caio Fernando Abreu)

De dramaturgia limpa e recheada de memórias afetivo-sociais e de equilibrado contexto cênico à estética de teatro distanciado, o “Aqueles Dois”, da Luna Lunera, pega o público pela atenção dedicada à obra do autor e à intenção desvendada em ato e práxis de rituais dramáticos afinados. Fidelidade às vozes caiofernandoabreunianas, repercute às vezes de construção cênica madura, sincera e recheada de propósitos que se fundam na arte do ator e diretor e fendem novos olhares em geografia dramática de viés particular da própria Companhia.

A cenografia que poderia parecer caótica e exagerada para fins ilustrativos, tem medida certa e mapa de limites explorados e terras pisadas no exaspero, inquietações, cotidianos contumazes e calor e frieza desempenhados em vidas que topam em hábitos domésticos e de trabalho comuns a gentes comuns, no círculo das gavetas sociais, para guardados e exposições de (in)conveniências, expiações de diferenças e “igualdades”, atos falhos e paradigmas ao espelho coletivo.

No caminho das ilhas, mapeado pela dramaturgia de cena, a Luna Lunera transmuta a dupla de personagens para um quadrilátero, em que, no óbvio, dois são quatro em diálogo frenético de personagens-narradores que transversalizam as todas outras vozes sociais, em diálogo íntimo de um(s) ao(s) outro(s) e do(s) outro(s) ao eu. Quatro perfis das personagens investidas pelos atores em que, num jogo de ciranda, os intérpretes vão transferindo os estímulos-respostas e, emendando fidedignamente, as dores, amores e comprometimentos, de natureza humana, presentes em corpo, inflexões e ciência do teatro revelado.

Os atores Cláudio Dias, Guilherme Théo, Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves, num jogo de cena e brinquedo de fingimento, retêm equilíbrio na arte do ator, reiteram premeditado acerto da língua e pátria elaborado pela direção de dramaturgia e brilham na felicidade de composição cênica que delibera entendimento a qualquer pessoa, que conheça ou não o autor, por aproximarem razão e sensibilidade em universo das personagens e dos criadores-intérpretes que geram conflito e descobrem o sinal do deus Ex-machine, para velhos e novos teatros experimentados.
(elenco de Aqueles Dois/arquivo da Cia. Luna Lunera)

Estão lá, na cena, o elementar autor-criador a alimentar a pesquisa, o entendimento e a sorte do amor (in)tranqüilo de fazer ver aos olhos do público, através da construção da personagem, o que orbita em metáfora e em realidade “confundidas” na mímesis da vida feita arte. E o ator-operário que compõe e decompõe a cartografia da cena, na operação do som, na afinação, desafinação e reafinação da luz em dados de cenografia, que monta e desmonta as marcas cenográficas que vão construindo a história bem contada.

A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como ‘um deserto de almas’ (...) entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra — talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou (...)" (Idem)

Criação, Direção e Dramaturgia (Cláudio Dias, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves, Rômulo Braga e Zé Walter Albinati); Relator do Processo (Zé Walter Albinati); Workshop de Ações Vocais (Odilon Esteves); Workshop de Contato Improvisação (Cláudio Dias); Workshop de Voz e Arranjo Vocal (Zé Walter Albinati); Cenário e Figurino (Núcleo de Criadores do Espetáculo); Consultoria de Figurino (Carla Mendonça); Iluminação (Felipe Cosse e Juliano Coelho) e a arte do ator (Cláudio Dias, Guilherme Théo, Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves) estão sob medida.

A desconstrução da história à construção do discurso novo, apresentada pelo autor e pela dramaturgia, vinga riscos e sentenças bem finalizadas. O trocar e vestir-se das personagens, os desconstruídos cenários, que se vão recompondo e reinventando o enredo, despem o homem e sua hora e investem atenção crítica a costumes e vertem calor ao exercício do exercício, porque teatro.

Não há apelos, nem gratuidade na arte apresentada. Nem mesmo o nu despenca ao vulgar, confirma a sutileza de toda a montagem preparada à recepção do público. A Companhia de Teatro abre gavetas sociais e deixa à mostra rigor e disciplina cotejadas à temática sanguínea, numa transitividade direta ou indireta que não dispensaria ato intransitivo. Concentrada receita de ótima cena brasileira.

Caio Fernando abraço, através de “Aqueles Dois”, da Cia., de Teatro Luna Lunera, e fico a repetir trecho de canção costa riquenha llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón.” (Tú Me Acostumbraste/Chavela Vargas), porque essa cena mineira de silêncios e exasperos, de contenção e explosões controladas é obra, aberta, pra ninguém gerar defeitos, só efeitos de prazer apreendido em teatro vivo.
Expediente:

“Aqueles Dois” - Cia de Teatro Luna Lunera (BH/MG)
Dias: 1º(20h), 2(20h) e 3 (19h) de março de 2013
Local: Teatro do Boi – Bairro Matadouro.

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