Gavetas sociais
por maneco nascimento
“Aqueles Dois”, montagem da Companhia de Teatro Luna Lunera, de Belo
Horizonte (MG) abriu temporada no palco do Complexo Cultural do Matadouro –
Teatro do Boi, na noite do dia 1º de março, às 20 horas, para público concentrado
e fiel à cena construída às vozes de Caio Fernando Abreu, autor gaúcho que doou,
generosamente, ao bom receptor o mote artístico para qualificado resultado em
dramaturgia refinada e econômica.
Delicado, crítico, político, agressivo, polido, mordaz e, inteligentemente,
dono de obra literária muito eficaz, no celeiro da literatura contemporânea
nacional, Caio Fernando Abreu emprenha vozes sociais que deliberaram à Cia. de
Teatro L. Lunera uma rica e laborada ação para teatros modernos e
contemporâneos de cena viva.
“Não chegaram
a usar palavras como ‘especial’, ‘diferente’ ou qualquer coisa assim. Apesar
de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto.
Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo
para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo
um pouco burros.” (Aqueles dois
(História de aparente mediocridade e repressão/Caio Fernando Abreu)
(História de aparente mediocridade e repressão/Caio Fernando Abreu)
De dramaturgia limpa e recheada de memórias afetivo-sociais
e de equilibrado contexto cênico à estética de teatro distanciado, o “Aqueles
Dois”, da Luna Lunera, pega o público pela atenção dedicada à obra do autor e à
intenção desvendada em ato e práxis de rituais dramáticos afinados. Fidelidade
às vozes caiofernandoabreunianas, repercute às vezes de construção cênica
madura, sincera e recheada de propósitos que se fundam na arte do ator e
diretor e fendem novos olhares em geografia dramática de viés particular da
própria Companhia.
A cenografia que poderia parecer caótica e exagerada
para fins ilustrativos, tem medida certa e mapa de limites explorados e terras
pisadas no exaspero, inquietações, cotidianos contumazes e calor e frieza
desempenhados em vidas que topam em hábitos domésticos e de trabalho comuns a
gentes comuns, no círculo das gavetas sociais, para guardados e exposições de (in)conveniências,
expiações de diferenças e “igualdades”, atos falhos e paradigmas ao espelho
coletivo.
No caminho das ilhas, mapeado pela dramaturgia de
cena, a Luna Lunera transmuta a dupla de personagens para um quadrilátero, em
que, no óbvio, dois são quatro em diálogo frenético de personagens-narradores
que transversalizam as todas outras vozes sociais, em diálogo íntimo de um(s)
ao(s) outro(s) e do(s) outro(s) ao eu. Quatro perfis das personagens investidas
pelos atores em que, num jogo de ciranda, os intérpretes vão transferindo os
estímulos-respostas e, emendando fidedignamente, as dores, amores e
comprometimentos, de natureza humana, presentes em corpo, inflexões e ciência
do teatro revelado.
Os atores Cláudio Dias, Guilherme Théo, Marcelo Souza
e Silva e Odilon Esteves, num jogo de cena e brinquedo de fingimento, retêm
equilíbrio na arte do ator, reiteram premeditado acerto da língua e pátria
elaborado pela direção de dramaturgia e brilham na felicidade de composição
cênica que delibera entendimento a qualquer pessoa, que conheça ou não o autor,
por aproximarem razão e sensibilidade em universo das personagens e dos criadores-intérpretes
que geram conflito e descobrem o sinal do deus Ex-machine, para velhos e novos teatros
experimentados.
(elenco de Aqueles Dois/arquivo da Cia. Luna Lunera)
Estão lá, na cena, o elementar autor-criador a
alimentar a pesquisa, o entendimento e a sorte do amor (in)tranqüilo de fazer
ver aos olhos do público, através da construção da personagem, o que orbita em
metáfora e em realidade “confundidas” na mímesis da vida feita arte. E o
ator-operário que compõe e decompõe a cartografia da cena, na operação do som,
na afinação, desafinação e reafinação da luz em dados de cenografia, que monta
e desmonta as marcas cenográficas que vão construindo a história bem contada.
“A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no
começo, um deles diria que a repartição era como ‘um deserto de almas’ (...) entre
cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e
vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker,
bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando
salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num
deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a
outra — talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou (...)" (Idem)
Criação, Direção e Dramaturgia (Cláudio Dias, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves,
Rômulo Braga e Zé Walter Albinati); Relator do Processo (Zé Walter Albinati); Workshop
de Ações Vocais (Odilon Esteves); Workshop de Contato Improvisação (Cláudio
Dias); Workshop de Voz e Arranjo Vocal (Zé Walter Albinati); Cenário e Figurino
(Núcleo de Criadores do Espetáculo); Consultoria de Figurino (Carla Mendonça);
Iluminação (Felipe Cosse e Juliano Coelho) e a arte do ator (Cláudio Dias, Guilherme
Théo, Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves) estão sob medida.
A desconstrução da história à construção do discurso novo, apresentada
pelo autor e pela dramaturgia, vinga riscos e sentenças bem finalizadas. O trocar
e vestir-se das personagens, os desconstruídos cenários, que se vão recompondo
e reinventando o enredo, despem o homem e sua hora e investem atenção crítica a
costumes e vertem calor ao exercício do exercício, porque teatro.
Não há apelos, nem gratuidade na arte apresentada. Nem mesmo o nu despenca
ao vulgar, confirma a sutileza de toda a montagem preparada à recepção do
público. A Companhia de Teatro abre gavetas sociais e deixa à mostra rigor e
disciplina cotejadas à temática sanguínea, numa transitividade direta ou
indireta que não dispensaria ato intransitivo. Concentrada receita de ótima
cena brasileira.
Caio Fernando
abraço, através de “Aqueles Dois”, da Cia., de Teatro Luna Lunera, e fico a
repetir trecho de canção costa riquenha “llegaste a mí como una tentación llenando de
inquietud mi corazón.” (Tú Me Acostumbraste/Chavela Vargas), porque
essa cena mineira de silêncios e exasperos, de contenção e explosões
controladas é obra, aberta, pra ninguém gerar defeitos, só efeitos de prazer
apreendido em teatro vivo.
Expediente:
“Aqueles Dois” - Cia de Teatro Luna Lunera
(BH/MG)
Dias: 1º(20h), 2(20h) e 3 (19h) de março de 2013
Local: Teatro do Boi – Bairro Matadouro.
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