Terra de Gigantes
por maneco nascimento
“A literatura e a linguagem parecem não atenderem aos requisitos para se
deixarem estudar sob óticas simplificadoras porque estão sempre em mudança
juntamente com seus operadores (...) Projeta-se que nas artes, quaisquer
tentativas no sentido de conter ou definir serão sempre transitórias, ou ao
menos estarão vinculadas a determinado espírito da época.” (Reinaldo,
Lilásia Chaves de Arêa Leão. A poesia moderna de H. Dobal. Teresina: UFPI,
2008. pag. 71)
O Núcleo do Dirceu apresentou sua proposta de intervenção em
domicílios da periferia de Teresina, na região do bairro Dirceu
Arcoverde. Em temporada realizada, na Galeria do
Clube dos Diários,pelos dias 28, 29 e 30 de setembro de 2012, a partir das 20 horas, a
cidade pode conferir a “Instalação-Performance 1000 Casas Núcleo do
Dirceu”.
Projeto apresentado pelo Ministério da Cultura e Petrobrás, com
Patrocínio de Manutenção do Núcleo do Dirceu, o “1000 Casas...” vem reiterar proposição
daquele coletivo de dança contemporânea, com desempenho de pesquisas, residências,
interação e intervenção na comunidade em que está inserido, há + três anos.
O Menu da temporada, Núcleo do Dirceu. O Prato servido, feijão
carioquinha temperado a alho, óleo e sal. Os convidados ao banquete, comensais da cidade
entre artistas, amigos, simpatizantes e curiosos. “A
Festa de Babel” teve todos os sabores para apreciação ou rejeição (in) disfarçável.
A cenografia, muito eficiente, mil casinhas espalhadas pelo campo cênico escolhido,
a Galeria do Clube dos Diários. Compunham ainda, junto
com público sentado sobre pequenos tamboretes espalhados em meio às casinhas,
uma bancada (mesa de cozinha de frente para a entrada do público) em que era
cozido o feijão.
Outros adereços, uma planta (Comigo ninguém pode) muito emblemática que
sempre era deslocada de um lugar, uma cadeira vermelha, uma “pele de mulher”
(de plástico) que servia de exemplos repetidos à violência doméstica contra a
parceira.
Espetáculo de intransitividade estética, para pescar elementos da teoria
literária, mantém uma interação direta com o público a partir do momento em que
a porta é liberada. Por caminhos estreitos entre as mil casinhas, a platéia tem
que buscar um tamborete para sentar e manter o bom senso de não pisar as
moradias. O elenco recepciona o público já em atividade de
deslocamento no espaço.
As personagens carregam suas casas e, ininterruptamente, estão
trocando-as de lugar. Espaço quase claustrofóbico por manter uma overmassa de construções de
papelão, os artistas-intérpretes têm concentrada energia para deslocar-se e
repetir moto contínuo as idas e vindas em rearrumação das casas, ou ocupação de
espaço ainda por caber + uma moradia.
Do público parece exigir certa concentração para acompanhar o
deslocamento das personagens e suas casinhas, sem causar acidentes ou
destruição pelas personagens da “vida” representada pela metáfora de inchaço
sócio-estrutural em Terra de Gigantes. Da intransitividade estética poder-se-ia
interpretar pela recepção da filosofia da arte representada em que os morros
mal vestidos ganham registros cenográficos ao olhar de “1000
Casas...”.
“A intransitividade é uma caracterísitca da lírica moderna (...)
Optando-se pelo pensamento da maioria, prevalece que fazer poesia moderna é não
se preocupar em comunicar algo a alguém, mas dar realce à ‘magia da linguagem’,
fazendo com que os versos passem a ser ‘acolhidos como estão’, sem terem como
condição indispensável serem entendidos, galgando prestígio para os impulsos da
palavra refletida, planejada, obscurecida e retirada de seu uso familiar.” (Idem.
pag. 68)
A intransitividade estética de “1000 Casas...” parece confundir-se com a
teoria da intransitividade poética da lírica moderna. O
espetáculo causa surpresa, estranhamento e gera um diferencial estético plástico
para gostar ou rejeitar, naturalmente, como requer a teoria da recepção.
“Segundo comentário de Friedrich (1991, p. 83), essa intransitividade
está estreitamente vinculada à categoria ‘fantasia ditatorial’, que parece
emergir do poema para provocar o leitor, causando-lhe impacto e desconforto:
‘(...) A vontade desta arte poética não é concluir, mas romper.’” (Idem.
pag. 68)
O projeto Núcleo do Dirceu projeta, sem sombra de dúvidas, uma estética de
desconstrução da tradição cênica “envelhecida” e reorienta novo olhar a partir
de estética própria e conceitual. Os artistas
intérpretes-criadores visitaram casas da vizinhança da sede do Coletivo e
regurgitaram ao público assistente sua própria maneira de apreender as
experiências reais dos vizinhos visitados.
“O poeta e crítico Mário de Andrade (1980, p. 209) contribui para a
compreensão da categoria intransitividade (...) e conclui que ‘[...] É o leitor
que se deve elevar à sensibilidade do poeta não é o poeta que se deve baixar à
sensibilidade do leitor. Pois este que traduza o telegrama!’ (sic)” (Idem.
pag. 68,69)
Separadas as devidas proporções quer sejam à intransitividade da poesia, quer à intransitividade
estética eveliniana, homens e mulheres de salto alto deslocando-se em estreitos
espaços entre as casinhas, “pisando em ovos” sem furar a película das
periferias geminadas e suas ruelas espremidas pela ocupação social, é para bom
entendedor que mantenha um “background” de afinidade à linguagem estabelecida.
Sobre a intransitividade em seu caráter poético da lírica moderna, Lilásia
Reinaldo aponta que João Cabral de Melo Neto (1994, p. 768) informa sobre uma tendência
da criação poética dos tempos atuais que não se preocupa em ser ratificada por
um processo comunicativo:
“Escrever deixou de ser para tal poeta atividade transitiva de dizer
determinadas coisas a determinadas classes de pessoas; escrever é agora
atividade intransitiva, é, para esse poeta, conhecer-se, examinar-se, dar-se em
espetáculo; é dizer coisa a quem puder entendê-la ou interessar-se por ela. O
alvo desse caçador não é o animal que ele vê passar correndo. Ele atira a
flecha de seu poema sem direção definida, com a obscura esperança de que uma
caça qualquer aconteça achar-se na sua trajetória.” (Idem.
pag. 69)
O projeto “1000 Casas...” do Núcleo do Dirceu propõe sua fórmula
estético-poética de refletir o entorno social que o “linka” a um projeto da
periferia em que está plantado. Há na dramaturgia, de contemporânea
expressão e linguagem conceitual de práxis, os depoimentos dos
criadores-intérpretes, a partitura corporal incrementada e uma variação do
mesmo tema em regurgitar das experiências refletidas pelo coletivo.
Estão lá o homem nu (anjo barroco) de salto alto, mapeando seu
depoimento e pressa de existir; a mulher que improvisa incontinenti um texto de
elaboração dinâmica e interação carismática com o público; o homem (travestido)
que cozinha um feijão enquanto constrói a vaidade comezinha; o homem que
arrasta uma planta daqui pra’colá e vez por outra lava a roupa suja, que
poderia conotar uma mulher espancada, etc.
A intransitividade de licença poética núcleodircesiana cumpre papel de edital
público, de manutenção cultural apoiada e expia como reflexão uma radiografia
dos conglomerados das encostas, morros e periferias sociais brasileiras sob
viés intransitivo. Ponto.
Amante de feijão, pude degustar o menu apresentado. Parabéns ao Marcelo
Evelin e a seu Núcleo do Dirceu.
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