terça-feira, 2 de outubro de 2012

Terra de Gigantes

Terra de Gigantes
por maneco nascimento

A literatura e a linguagem parecem não atenderem aos requisitos para se deixarem estudar sob óticas simplificadoras porque estão sempre em mudança juntamente com seus operadores (...) Projeta-se que nas artes, quaisquer tentativas no sentido de conter ou definir serão sempre transitórias, ou ao menos estarão vinculadas a determinado espírito da época.” (Reinaldo, Lilásia Chaves de Arêa Leão. A poesia moderna de H. Dobal. Teresina: UFPI, 2008. pag. 71)

O
 Núcleo do Dirceu apresentou sua proposta de intervenção em domicílios da periferia de Teresina, na região do bairro Dirceu Arcoverde. Em temporada realizada, na Galeria do Clube dos Diários,pelos dias 28, 29 e 30 de setembro de 2012, a partir das 20 horas, a cidade pode conferir a “Instalação-Performance 1000 Casas Núcleo do Dirceu”.

Projeto apresentado pelo
 Ministério da Cultura e Petrobrás, com Patrocínio de Manutenção do Núcleo do Dirceu, o “1000 Casas...” vem reiterar proposição daquele coletivo de dança contemporânea, com desempenho de pesquisas, residências, interação e intervenção na comunidade em que está inserido, há + três anos.

O Menu da temporada, Núcleo do Dirceu. O Prato servido, feijão carioquinha temperado a alho, óleo e sal. Os convidados ao banquete, comensais da cidade entre artistas, amigos, simpatizantes e curiosos. “A Festa de Babel” teve todos os sabores para apreciação ou rejeição (in) disfarçável.

A cenografia, muito eficiente, mil casinhas espalhadas pelo campo cênico escolhido, a Galeria do Clube dos Diários. Compunham ainda, junto com público sentado sobre pequenos tamboretes espalhados em meio às casinhas, uma bancada (mesa de cozinha de frente para a entrada do público) em que era cozido o feijão. 

Outros adereços, uma planta (Comigo ninguém pode) muito emblemática que sempre era deslocada de um lugar, uma cadeira vermelha, uma “pele de mulher” (de plástico) que servia de exemplos repetidos à violência doméstica contra a parceira.

Espetáculo de intransitividade estética, para pescar elementos da teoria literária, mantém uma interação direta com o público a partir do momento em que a porta é liberada. Por caminhos estreitos entre as mil casinhas, a platéia tem que buscar um tamborete para sentar e manter o bom senso de não pisar as moradias. O elenco recepciona o público já em atividade de deslocamento no espaço.

As personagens carregam suas casas e, ininterruptamente, estão trocando-as de lugar. Espaço quase claustrofóbico por manter uma overmassa de construções de papelão, os artistas-intérpretes têm concentrada energia para deslocar-se e repetir moto contínuo as idas e vindas em rearrumação das casas, ou ocupação de espaço ainda por caber + uma moradia.

Do público parece exigir certa concentração para acompanhar o deslocamento das personagens e suas casinhas, sem causar acidentes ou destruição pelas personagens da “vida” representada pela metáfora de inchaço sócio-estrutural em Terra de Gigantes. Da intransitividade estética poder-se-ia interpretar pela recepção da filosofia da arte representada em que os morros mal vestidos ganham registros cenográficos ao olhar de “1000 Casas...”.

A intransitividade é uma caracterísitca da lírica moderna (...) Optando-se pelo pensamento da maioria, prevalece que fazer poesia moderna é não se preocupar em comunicar algo a alguém, mas dar realce à ‘magia da linguagem’, fazendo com que os versos passem a ser ‘acolhidos como estão’, sem terem como condição indispensável serem entendidos, galgando prestígio para os impulsos da palavra refletida, planejada, obscurecida e retirada de seu uso familiar.” (Idem. pag. 68)

A intransitividade estética de “1000 Casas...” parece confundir-se com a teoria da intransitividade poética da lírica moderna. O espetáculo causa surpresa, estranhamento e gera um diferencial estético plástico para gostar ou rejeitar, naturalmente, como requer a teoria da recepção.

Segundo comentário de Friedrich (1991, p. 83), essa intransitividade está estreitamente vinculada à categoria ‘fantasia ditatorial’, que parece emergir do poema para provocar o leitor, causando-lhe impacto e desconforto: ‘(...) A vontade desta arte poética não é concluir, mas romper.’” (Idem. pag. 68)

O projeto
 Núcleo do Dirceu projeta, sem sombra de dúvidas, uma estética de desconstrução da tradição cênica “envelhecida” e reorienta novo olhar a partir de estética própria e conceitual. Os artistas intérpretes-criadores visitaram casas da vizinhança da sede do Coletivo e regurgitaram ao público assistente sua própria maneira de apreender as experiências reais dos vizinhos visitados.

O poeta e crítico Mário de Andrade (1980, p. 209) contribui para a compreensão da categoria intransitividade (...) e conclui que ‘[...] É o leitor que se deve elevar à sensibilidade do poeta não é o poeta que se deve baixar à sensibilidade do leitor. Pois este que traduza o telegrama!’ (sic)” (Idem. pag. 68,69)

Separadas as devidas proporções quer sejam à intransitividade da poesia, quer à intransitividade estética eveliniana, homens e mulheres de salto alto deslocando-se em estreitos espaços entre as casinhas, “pisando em ovos” sem furar a película das periferias geminadas e suas ruelas espremidas pela ocupação social, é para bom entendedor que mantenha um “background” de afinidade à linguagem estabelecida.

Sobre a intransitividade em seu caráter poético da lírica moderna,
 Lilásia Reinaldo aponta que João Cabral de Melo Neto (1994, p. 768) informa sobre uma tendência da criação poética dos tempos atuais que não se preocupa em ser ratificada por um processo comunicativo:

Escrever deixou de ser para tal poeta atividade transitiva de dizer determinadas coisas a determinadas classes de pessoas; escrever é agora atividade intransitiva, é, para esse poeta, conhecer-se, examinar-se, dar-se em espetáculo; é dizer coisa a quem puder entendê-la ou interessar-se por ela. O alvo desse caçador não é o animal que ele vê passar correndo. Ele atira a flecha de seu poema sem direção definida, com a obscura esperança de que uma caça qualquer aconteça achar-se na sua trajetória.” (Idem. pag. 69)

O projeto “1000 Casas...” do Núcleo do Dirceu propõe sua fórmula estético-poética de refletir o entorno social que o “linka” a um projeto da periferia em que está plantado. Há na dramaturgia, de contemporânea expressão e linguagem conceitual de práxis, os depoimentos dos criadores-intérpretes, a partitura corporal incrementada e uma variação do mesmo tema em regurgitar das experiências refletidas pelo coletivo.

Estão lá
 o homem nu (anjo barroco) de salto alto, mapeando seu depoimento e pressa de existir; a mulher que improvisa incontinenti um texto de elaboração dinâmica e interação carismática com o público; o homem (travestido) que cozinha um feijão enquanto constrói a vaidade comezinha; o homem que arrasta uma planta daqui pra’colá e vez por outra lava a roupa suja, que poderia conotar uma mulher espancada, etc.

A intransitividade de licença poética núcleodircesiana cumpre papel de edital público, de manutenção cultural apoiada e expia como reflexão uma radiografia dos conglomerados das encostas, morros e periferias sociais brasileiras sob viés intransitivo. Ponto.

Amante de feijão, pude degustar o menu apresentado. Parabéns ao Marcelo Evelin e a seu Núcleo do Dirceu.


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