domingo, 23 de agosto de 2015

Poderes revelados

Uma Peça a Oito Mãos
por maneco nascimento

Língua, linguagem, falas e vozes integradas a oito mãos que reúnem autores de quatro nações de distintas (sobre)vivências, mas de língua comum.

Portugal, Angola, Cabo Verde e Brasil reuniram esforço de beletras e, em escopo de produto criativo de interações estéticas e literárias, pariram "Quotidiamo - esta não é uma história de amor", do português Rui Zink, do angolano José Mena Abranches, do caboverdeano Abraão Vicente e do brasileiro Ivam Cabral.

A obra, em livro, tem uma acuidade visual artística. Nas cores, da capa e design (Carlos Roque), a apropriação de uma foto do espetáculo. Emblemática, em reprodução na projeção de uma cena que poderia abrir margem à recepção de "masturbação", prazer solitário da mulher montada numa cadeira de "época", estilo colonial. 

As cores, na foto encorpada à capa, variam do pino de luz, amarelo, fechado na cena da atriz, em fusão com o vermelho da + iluminação que cobre a atriz/personagem e destaca, também, a cadeira de palhinha em tons amarelo ouro e rebuscados de contornos, em branco e amarelo. Ao fundo, projeção de contraponto da mulher, delineada  em cores de roxo e preto à imagem dessa fêmea em ávida expressão de gozo.

No conteúdo do livro, o texto da peça está sanduichado pelas cores de intracapas, a cada capítulo, no matiz do preto. As fotos, internas e intensas, do cotidiano vivenciado das personagens, também estão em registro em preto e branco. Arte visual de confirmação do jogo do preto no branco, para duas cartadas e dois destinos intrínsecos do dia a dia de devoradores da própria sorte.

Livro Peça de teatro, Peça de Teatro, feita Livro, em oito atos. Uma provocação do diretor, autor, encenador de teatro, dramaturgo de palco e Director do Grupo do Centro Cultural Português do Mindelo, João Branco, gerou a obra para palco, bibliotecas e novas leituras.

"Sinceramente, não sei onde ou quando me nasceu a ideia. Desafiei o escritor Rui Zink, de Portugal, a iniciar o processo. Depois, o dramaturgo José Mena Abrantes, de Angola, a dar o seguimento. De Cabo Verde, convidei o Abraão Vicente para avançar com a terceira parte e, finalmente, desafiei o Ivam Cabral, cujo espírito de generosidade falou mais alto do que a falta de tempo provocada pelos biliões de projetos em que sempre se encontra envolvido. Que privilégio, um texto escrito por quatro pessoas tão talentosas!" (João Branco, de Portugal/Cabo Verde IN Zink, Rui; Mena Abrantes, José; Vicente, Abraão; Cabral, Ivam. Quotidiamo - esta não é uma história de amor. Luanda: Mayamba. 2015. 84 p. [Coleção Nzadi])

Texto direto, prático, contemporâneo e de estreita proximidade de língua, linguagem e estilo apropriados aos intertextos e particularidades linguísticas transversais de fala, escrita e oralidade da língua portuguesa, brasileira e crioula, indistintas, na intervenção estético literária apresentada em peça de oito cenas, escrita a oito mãos.

Cenas I e II escritas por Rui Zink; Cenas III e IV, por José Mena Abrantes; Cenas V e VI, por Abraão Vicente e as VII e VIII cenas, pelas mãos de Ivam Cabral. Na abertura, da primeira cena/texto, o aparentemente comum atendimento, em um guichê de banco, em que uma mulher dialoga com homem que pede empréstimo à instituição financeira.

Na negação do empréstimo, em tempos de crise sócio econômica, os desdobramentos da conversa acabam em contrato, acordo de casamento em que começam os jogos de poder, domínio e dominador(a), blefe, humilhações, cobranças de contas e juros da relação comercial de negócios conjugais e as viradas que o jogo dá.

Da cena do empréstimo ao cotidiano das vidinhas acertadas, num contrato de jogos, com direitos a mudanças de regras, ou desvio do acordo primitivo na tentativa de reinventar os jogos dramáticos e mortais da relação de negócios, sem amor, e com paixões reveladas, mas nunca concretizadas, pois fora das regras do jogo, a tragédia não anunciada se instala.
(cena de Quotidiamo/acervo GTCCPortuguês do Mindelo IC Mindelo)

Um moto contínuo do jogo de cartas demarcadas, peças humanas descartáveis no discurso de posse, poder, sedução, sexismo de gêneros, feminismo versus machismo confrontados, viés de troca de papéis no jogo de dominação e variação sobre o mesmo tema que vive na linha divisória da razão e loucura dosadas. 

Esquizofrenia conjugal que começa com dois desconhecidos que se alçam a um contexto de casal até a intrusão de um amante, para concretizar novas regras ao triângulo escaleno do jogo de amores frustrados.

Um brinquedo perigoso que ganha "insights" deslizados a pequenas psicopatias celebradas na brincadeira séria e histerias contrapostas na relação de vida e morte experimentadas na agulha da arma de fogo testada, à exaustão, no jogo da roleta russa, composto na disputa de sexos e para efeméride da vida expiada, num ambiente familiar de casados.

O jogo termina como começa, no balcão de negócios com a inversão de papéis para o desfecho de voltar a jogar, sem espaço para amor ou felicidade. Há um mundo esquizofrênico para indelicadas incursões de perversidades mastigadas e regurgitos de frustrações e desejos sonhados, que nunca encontram ecos de afeição, ou propriedade de gozar o prazer de um negócio de amor lucrativo.

A troca de papéis, no poder, ao jogo do mata-mata, se instaura sempre na vidinha em círculo vicioso e viciado e retira quaisquer possibilidades de encontrarem saídas que não sejam permanecer no jogo, consignado desde o balcão de negócios.

Na dialética de inflexões das vozes socais, "Quotidiamo - esta não é uma história de amor", fica sujeito e está objeto de reflexões, acerca de relações humanas e que propósitos reviram-se em perdas da humanidade e fragilizam a ação solidária de que um(a) possa encontrar no outro(a) a identidade e identificação ao amor, perdão, cessão de turno nos relacionamentos sociais, sem enfraquecimento das liberdades individuais e na convivência em harmonia com divisão de tarefas de gênero, sem que um(a) detenha força sobre outrem.

Uma livre e concreta electra inconcreta, licença poética às vezes de autores e dramaturgos que se permitiram unificar pensamento e arte da escrita dramática para efeito de palco. Clareza, coesão e coerência na escritura e domínio de amarras na carpintaria textual ao teatro vivo, dinâmico e discursivo expiador das relações humanas intrincadas e comuns em qualquer língua, nação, ou conflitos geradores de reflexão e transformação à filosofia moto contínua de gerar mudanças sempre.

A montagem, do texto, para espetáculo facilitado às últimas mãos, a um então somatório de dez, ficou a cargo de João Branco. No livro editado, imagens fortes (fotos de Hélder Doca/Cabo Verde) de cenas escafandradas da dramaturgia textual e de palco.

"Quotidiamo - esta não é uma história de amor", do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português IC Mindelo - Mindelo/Cabo Verde, encenação de João Branco e actuação de Janaína Alves Branco e Renato Lopes, não deve jamais decepcionar. 

A Cia. de Teatro do Mindelo, conspirada pela arte de cena possível por Branco e seu elenco, já deu provas do fazer teatral, quando esteve em Teresina Piauí Brasil, durante edições anteriores do FestLuso.

De +, estará, este espetáculo mindelense/caboverdeano, se apresentando dentro do 6o. Festival de Teatro Lusófono - FestLuso 2015, dia 29 de agosto (sábado), às 23 horas, no Teatro Estação (Trilhos do Teatro/antiga estação ferroviárias RFFSA, Miguel Rosa com Frei Serafim, centro/norte).

É só conferir, pra ver que a obra literário dramatúrgica (Zink, Abrantes, Vicente, Cabral) tomou forma de palco e saltou da vida de letras dramáticas para vida de cena (Branco, J. Alves Branco e R. Lopes) e não há chances do universo não ter conspirado a favor.

Serviço:
6o. FestLuso 2015 Ano Tarciso Prado
a peça: "Quotidiamo - esta não é uma história de amor"
encenação: João Branco
interpretes: Janaína A. Branco e Renato Lopes
dia 29 de agosto
às 23 horas
no Teatro Estação.
Concorra a seu ingresso e não perca esta emoção.
Entrada Franca!

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