Corredor de cena
por maneco nascimento
A Escola Técnica Estadual de
Teatro “Prof. Gomes Campos” ensaiou o lançamento do projeto Núcleo de Estudos
Dramáticos – NED, com abertura oficial de cena praticada, numa atividade
complementar ao eixo curricular da escola, que reuniu professores, aluno(a)s e ex-
aluno(a)s do curso técnico, em atuação, daquela instituição. O exercício de
palco foi para “Corredor Polonês”, de Ítalo Gustavo Leite. A única apresentação
deu-se em 16 de julho de 2013, às 20h, no Theatro 4 de Setembro.
Nas falas oficiosas, antes da
peça encenada, Aci Campelo apresentou a iniciativa como pontapé de abertura de
montagens, a partir de núcleo de estudos dramáticos específico, dentro do
histórico institucional de formação e iniciação técnica em teatro. A diretora da Escola, Emanuelle Vieira, reiterou proposta de tornar ativa a idéia, há
muito sonhada, de um Grupo que tornasse a prática de encenações uma ação
continuada do exercício de ator e cena.
“Corredor Polonês”, mapeado para
desenhos de dramaturgia de palco por Chiquinho Pereira, cumpriu seu papel de
ação cênica e trouxe um elenco concentrado em algo que atrai e apaixona futuros
amantes do teatro, que é a arte de representar. Da cartografia e linhas
divisórias, interativadas a limites de ensino aprendizagem e ação prática da
didática de apreensão de atos de palcos, a montagem não fugiu do “métier”.
A Cenografia desenhada se deu em
três planos de movimentação de intérprete e definição de espacialidade e
ocupação dramática. Um núcleo de conversações, que poderia ser mesa de bar ou
sala de estar (plano frente esquerda do palco); outro núcleo que poderia ser sala
de estar, ou quarto de casal (plano médio palco, centro direita da cena) e um
núcleo ao fundo, em plano baixo (ações de realidade) e plano alto (ações de
memória).
A dramaturgia de cena,
propriamente, parece converter-se para intertextualidade ziembinskiana de
imaginário, sonho e realidade. Na montagem de “Corredor Polonês” incorre nos planos
de realidade (plano baixo), memória e “morte” (plano alto) que adquire licença
de transversalidade literária de Ítalo Leite com Nelson Rodrigues. Há
identidade textual de “Corredor Polonês” com a “flor de obsessão” petalada para
pedofilia, incesto, homossexualidade, violência sexual, cinismo, perversão e
perversidade, cegueira consentida, assédio moral e ambientação discursiva de
amoralidade de impacto flagrante.
No plano dramático da realidade,
a guerra comezinha entre parentes e aderentes em que vomitam ranços, ambições,
amarguras, ódio, farpas afiadas do mundinho particular contaminado pela exegese
coletiva do privado de sangue, crime e pecado. No plano da memória e “morte”, a
ideia recorrente que abre e fecha o espetáculo, a retirada do bebê dos braços
da mãe e entregue à adoção em confronto com a realidade presente que permeia o regurgito
do estupro e “morte” na infância, a perda da inocência vilipendiada e outras “cositas
más”.
Outra ação de estética e memória
dá-se nas intervenções e citações de dramaturgia literária que perpassa pelo
clássico (Medéia) e desdobramentos textuais que contemporizam a prosa e poesia
dramáticos a efeitos de catarse e reflexivo distanciamento crítico na epifania
da cena posta. Nalgum momento, o texto na voz da intérprete parece bem
ensaiado, mas sem a internalização necessária que ganhe naturalidade da
repetição da repetição premeditada.
Célia Lopez, em desempenho da
jornalista (Caira), uma filha bêbada e drogada, com ironias e frases de efeitos
que martelam a “mesmice” familiar de guerra em paz obscura. Tiradas como “Deus
só dá asas a quem não tem dentes”, ou a que repete, exaustivamente, sobre o
sangramento do velho pai entre a vida e a morte, enquanto intervém nas
conversas paralelas e meridianos de sangue de partilha cobiçada, dão um ganho
de expressão individual que vai amealhando o todo pelo uno dramático de ironias
nelsonrodrigueanas.
(arte cartaz/foto: Divulgação)
A mãe (Irene), de Flávia Souza,
também mantém seu momento de expressivo drama para Ítalos e Nelsons declarados.
Amor permissivo e determinado cego para
obscurecer o testemunho das manias e taras, do cônjuge agressor sexual da
própria filha, está presente na contenção estalada e fervorosa de útero velho
da “mãedrasta”, perfilada por Flávia.
O filho, o evangélico (Celino), de Afonso
Lopes, merecia melhor tranquilidade para emblematizar a (in)compreensão bíblica
revelada à cena. Apresenta, ainda, extensão dramática sem o mergulho, da margem
ao âmago, da personagem confusa, que desliza entre Deus e o diabo na terra das
aflições e culpas purgadas.
A filha adotiva e lésbica (Aurora),
de Giselle Tôrres, vítima de estupro assistido pela mãe e que teve o pai como
estuprador, é de composição que caminha para + integração da própria conquista.
Ainda que o solo para “Medéia” pareça só muito bem ensaiado, na espera de maior
naturalidade dramática, a intérprete consegue manter nível de ação e
representação da linha de aprendizagem e convencimento.
Valdenia Carvalho compõe a atriz
(Carla), esposa de Miguel. Está na média de aceitação do próprio exercício
dramático e compreensão para economia e tranqüila interpretação. Salvo momento de
poema recitado, em que a intérprete desliza no mastigar de palavras para
pequena audição da própria sonoridade, logo a poesia evolui pouco, toda a sua
passagem pelo corredor dos flagelos está bem.
O ambicioso advogado (Miguel), agressor
da mulher, vivido por Giordano Bruno, ainda não conseguiu destaque necessário à
própria personagem provocada. Um bom leitor, ou perspicaz observador do mundo
em redor, maturaria melhor performance à cena solicitada. Talvez a pouca idade,
ou encolhida prospecção na literatura dramática, especialmente a da escola do
teatro moderno brasileiro, involua do maior acerto e interrompa a possibilidade,
do intérprete, a uma + aplicada compreensão da personagem cafajeste e violenta
que o dramaturgo intertextual provoca.
(arte cartaz/foto: Divulgação)
A personagem do plano da memória
e “morte” (mãe biológica de Aurora), repercutida por Rayara Medeiros, está no
plano dramático sugerido pelo diretor de cena. Emblematiza signos e siglas à
leitura de significantes propositados e significados de linguística de
apreensão do discurso das imagens de memórias de sofrimento imprimidas. Está
lá, no “Corredor Polonês”, um Álbum de Família em revisitado ato de drama.
Completam o elenco, Júlia
Hahab (enfermeira 1 - jovem), Orlene Araújo (enfermeira 2 - senhora), e
estão bem na fita. A Maquiagem é de Lorena Soares e a Direção de Fotografia do
espetáculo e a Sonoplastia são assinadas por Robinson Levy.
A luz do espetáculo prepara
claros e escuros do enredo sangrado e corre acenos de céu e infernos divididos.
A pesquisa de figurinos, de Célia Lopes, está implicada no realismo moderno da
dramaturgia do corredor de purgação. Esse “Corredor Polonês”, dirigido por
Chiquinho Pereira, expia passagem em que as personagens estocam na própria
ferida e maculam a carne fraca, em franco processo de degeneração.
O Núcleo de Estudos Dramáticos –
NED, da Escola de Teatro “Gomes Campos” aponta na direção certa e insiste na
arte de representar. O corredor de cena está plantado. Começa a aprender a
lição de cor.
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