terça-feira, 23 de julho de 2013

Corredor de cena

Corredor de cena
por maneco nascimento


A Escola Técnica Estadual de Teatro “Prof. Gomes Campos” ensaiou o lançamento do projeto Núcleo de Estudos Dramáticos – NED, com abertura oficial de cena praticada, numa atividade complementar ao eixo curricular da escola, que reuniu professores, aluno(a)s e ex- aluno(a)s do curso técnico, em atuação, daquela instituição. O exercício de palco foi para “Corredor Polonês”, de Ítalo Gustavo Leite. A única apresentação deu-se em 16 de julho de 2013, às 20h, no Theatro  4 de Setembro.

Nas falas oficiosas, antes da peça encenada, Aci Campelo apresentou a iniciativa como pontapé de abertura de montagens, a partir de núcleo de estudos dramáticos específico, dentro do histórico institucional de formação e iniciação técnica em teatro. A diretora da Escola, Emanuelle Vieira, reiterou proposta de tornar ativa a idéia, há muito sonhada, de um Grupo que tornasse a prática de encenações uma ação continuada do exercício de ator e cena.

“Corredor Polonês”, mapeado para desenhos de dramaturgia de palco por Chiquinho Pereira, cumpriu seu papel de ação cênica e trouxe um elenco concentrado em algo que atrai e apaixona futuros amantes do teatro, que é a arte de representar. Da cartografia e linhas divisórias, interativadas a limites de ensino aprendizagem e ação prática da didática de apreensão de atos de palcos, a montagem não fugiu do “métier”.

A Cenografia desenhada se deu em três planos de movimentação de intérprete e definição de espacialidade e ocupação dramática. Um núcleo de conversações, que poderia ser mesa de bar ou sala de estar (plano frente esquerda do palco); outro núcleo que poderia ser sala de estar, ou quarto de casal (plano médio palco, centro direita da cena) e um núcleo ao fundo, em plano baixo (ações de realidade) e plano alto (ações de memória).

A dramaturgia de cena, propriamente, parece converter-se para intertextualidade ziembinskiana de imaginário, sonho e realidade. Na montagem de “Corredor Polonês” incorre nos planos de realidade (plano baixo), memória e “morte” (plano alto) que adquire licença de transversalidade literária de Ítalo Leite com Nelson Rodrigues. Há identidade textual de “Corredor Polonês” com a “flor de obsessão” petalada para pedofilia, incesto, homossexualidade, violência sexual, cinismo, perversão e perversidade, cegueira consentida, assédio moral e ambientação discursiva de amoralidade de impacto flagrante.

No plano dramático da realidade, a guerra comezinha entre parentes e aderentes em que vomitam ranços, ambições, amarguras, ódio, farpas afiadas do mundinho particular contaminado pela exegese coletiva do privado de sangue, crime e pecado. No plano da memória e “morte”, a ideia recorrente que abre e fecha o espetáculo, a retirada do bebê dos braços da mãe e entregue à adoção em confronto com a realidade presente que permeia o regurgito do estupro e “morte” na infância, a perda da inocência vilipendiada e outras “cositas más”.

Outra ação de estética e memória dá-se nas intervenções e citações de dramaturgia literária que perpassa pelo clássico (Medéia) e desdobramentos textuais que contemporizam a prosa e poesia dramáticos a efeitos de catarse e reflexivo distanciamento crítico na epifania da cena posta. Nalgum momento, o texto na voz da intérprete parece bem ensaiado, mas sem a internalização necessária que ganhe naturalidade da repetição da repetição premeditada.

Célia Lopez, em desempenho da jornalista (Caira), uma filha bêbada e drogada, com ironias e frases de efeitos que martelam a “mesmice” familiar de guerra em paz obscura. Tiradas como “Deus só dá asas a quem não tem dentes”, ou a que repete, exaustivamente, sobre o sangramento do velho pai entre a vida e a morte, enquanto intervém nas conversas paralelas e meridianos de sangue de partilha cobiçada, dão um ganho de expressão individual que vai amealhando o todo pelo uno dramático de ironias nelsonrodrigueanas.
(arte cartaz/foto: Divulgação)

A mãe (Irene), de Flávia Souza, também mantém seu momento de expressivo drama para Ítalos e Nelsons declarados.  Amor permissivo e determinado cego para obscurecer o testemunho das manias e taras, do cônjuge agressor sexual da própria filha, está presente na contenção estalada e fervorosa de útero velho da “mãedrasta”, perfilada por Flávia.

 O filho, o evangélico (Celino), de Afonso Lopes, merecia melhor tranquilidade para emblematizar a (in)compreensão bíblica revelada à cena. Apresenta, ainda, extensão dramática sem o mergulho, da margem ao âmago, da personagem confusa, que desliza entre Deus e o diabo na terra das aflições e culpas purgadas.

A filha adotiva e lésbica (Aurora), de Giselle Tôrres, vítima de estupro assistido pela mãe e que teve o pai como estuprador, é de composição que caminha para + integração da própria conquista. Ainda que o solo para “Medéia” pareça só muito bem ensaiado, na espera de maior naturalidade dramática, a intérprete consegue manter nível de ação e representação da linha de aprendizagem e convencimento.

Valdenia Carvalho compõe a atriz (Carla), esposa de Miguel. Está na média de aceitação do próprio exercício dramático e compreensão para economia e tranqüila interpretação. Salvo momento de poema recitado, em que a intérprete desliza no mastigar de palavras para pequena audição da própria sonoridade, logo a poesia evolui pouco, toda a sua passagem pelo corredor dos flagelos está bem.

O ambicioso advogado (Miguel), agressor da mulher, vivido por Giordano Bruno, ainda não conseguiu destaque necessário à própria personagem provocada. Um bom leitor, ou perspicaz observador do mundo em redor, maturaria melhor performance à cena solicitada. Talvez a pouca idade, ou encolhida prospecção na literatura dramática, especialmente a da escola do teatro moderno brasileiro, involua do maior acerto e interrompa a possibilidade, do intérprete, a uma + aplicada compreensão da personagem cafajeste e violenta que o dramaturgo intertextual provoca.
(arte cartaz/foto: Divulgação)

A personagem do plano da memória e “morte” (mãe biológica de Aurora), repercutida por Rayara Medeiros, está no plano dramático sugerido pelo diretor de cena. Emblematiza signos e siglas à leitura de significantes propositados e significados de linguística de apreensão do discurso das imagens de memórias de sofrimento imprimidas. Está lá, no “Corredor Polonês”, um Álbum de Família em revisitado ato de drama.

Completam o elenco, Júlia Hahab (enfermeira 1 - jovem), Orlene Araújo (enfermeira 2 - senhora), e estão bem na fita. A Maquiagem é de Lorena Soares e a Direção de Fotografia do espetáculo e a Sonoplastia são assinadas por Robinson Levy.

A luz do espetáculo prepara claros e escuros do enredo sangrado e corre acenos de céu e infernos divididos. A pesquisa de figurinos, de Célia Lopes, está implicada no realismo moderno da dramaturgia do corredor de purgação. Esse “Corredor Polonês”, dirigido por Chiquinho Pereira, expia passagem em que as personagens estocam na própria ferida e maculam a carne fraca, em franco processo de degeneração.


O Núcleo de Estudos Dramáticos – NED, da Escola de Teatro “Gomes Campos” aponta na direção certa e insiste na arte de representar. O corredor de cena está plantado. Começa a aprender a lição de cor. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário