Encontro c’uma “velha” amiga
por maneco nascimento
“Raimunda Raimunda” desceu o céu
das potestades dramáticas e armou o carroção da licença poética no tablado do
Theatro 4 de Setembro, dia 27 de junho de 2013, a partir das 20 horas. A
discípula do deus Ex-machine que reanimou os ritos de passagem e rituais à
mímesis da tragédia e comédia foi nada menos que Regina Duarte.
Criador de “Raimunda Raimunda”, no ano de
1972, a tetratologia piauiense de teatro abriga os textos “Raimunda Jovita na
Roleta da Vida ou Quis o Destino: De Pucella e Ninon!”; “O Trágico Destino de
Duas Raimundas ou Os Dois Amores de Lampião Antes de Maria Bonita e Só Agora
Revelados”; “Raimunda Pinto, Sim Senhor!” e “Ramanda e Rudá”.
Das quatro peças, Regina Duarte
recortou duas para realizar sua leitura sobre Chico Pereira. As pérolas (es)colhidas,
“Raimunda Pinto, Sim Senhor!” e “Ramanda e Rudá”. Numa saga de mulheres
nordestinas, em busca de seu pássaro azulão, Chico ganhou o coração da atriz e
deu-lhe mote para brilhar em falas do imaginário coletivo, porque a “vida é
sonho” e o teatro mágico é ciência e arte permutadas. A diretora Regina Duarte
sacou a carta da manga e reinventou o Chico numa recepção para “Ramanda e Rudá”
e “Raimunda Pinto, Sim Senhor!”, quebrando a ordem natural da tetralogia do
autor.
Das cenografias, para “Ramanda e
Rudá”, no primeiro ato da geografia dramatúrgica de Regina, painéis definem a
cena estabelecendo a arena, no tablado, às virtuoses e fugas do artista. Na
diáspora em busca da terra de São Saruê, após a hecatombe, Ramanda Regina e
Rudá, o hemafrodita de proveta, únicos sobreviventes da bomba atômica rimam a
anacronia possibilitada pela dramaturgia trágica. Cenário neutro e preenchido
de “vazios” diluídos no ar sólidos.
A “rarefeita” direção de arte
planejada à cena ganha equilíbrio e reafina discursos autorais da cepa original
e da releitura da direção organizacionada na cenografia e figurinos. Os
figurinos e adereços de Ramanda e Rudá ganham ordem, na medida certa, e
atomizam ações e deliberadas ilustrações pertinentes ao olho espectador e
expectativas dramáticas do “neutro” cênico. Há para os figurinos a pesquisa da
cultura popular que emblematizam o ser e estar criativo com economia e arte
visual equalizados.
A Ramanda, de Regina, se despe do
trágico visto em outras leituras para a obra, como a realizada pelo Maranhão
(Marcelo Flecha, 1999) e mantém a energia, alegria e felicidade, no caos, que já
tatuavam a rota de “fuga” da Raimunda Pinto até chegar ao desfecho do incidente
da bomba atômica, ordem cronológica da dramaturgia do autor. Ramanda Regina tem
alegria contagiante e libertária, sem comiserar as próprias memórias
regurgitadas no percurso de alcançar o céu nordestino de redenção.
(Raimunda Regina Pinto)/foto: divulgação)
A passagem de “Ramanda e Rudá” ao
segundo ato, “Raimunda Pinto”, reintensifica o drama particular coletivizado. A
pesquisa musical desliza efeito impactante com “Aos Nossos Filhos”, na voz de Elis Regina. Outra
palavra não explicaria melhor a escolha no rito de passagem.
Raimunda Regina Pinto é “must”! Os
painéis de cartografia cênica vão se modificando, através de projeções de
cidade, lugares, memórias e riscos de cena à medida que as narrativas
(pré-gravadas) de apresentação da trama vão construindo o enredo da cearense
leporina que vai à cata de sua sorte. “Raimunda” ganha, naturalmente, nova
dinâmica e ritmos perspicazes em ação e direção propositada. Está lá a originalidade
textual com seu característico apelo de construção da personagem.
Nessa segunda peça, além dos
ilustrativos de projeções em correto e artístico de identidade narrativa, as
cenas outras montadas com elementos como varal, caminhão e conversível
governamental, portão da escola de enfermagem, avião e, demais adereços e
contrarregras, cenografisam magia e encanto presentes na sugestão literária,
mas operacionalizados com eficiência criativa pela direção cenográfica. Não
perde a veia tragicômica, nem a ciência dramática para drama e placebo
artístico.
O elenco da contracena, todo
masculino (Gustavo Rodrigues, Rodrigo Candelot, Henrique Manoel Pinho,
André Cursino, Milton Filho, Saulo Segreto, Ricardo Soares e Rodrigo Becker)
repete uma fórmula de proximidade hareniana, mas não gera ciúme. Gesta orgulho
à intertextualização da dramaturgia reginaduartiana com umas das +
significativas montagens já conquistada pelo Grupo piauiense.
Os atores que se desdobram, em todas as
personagens “antagonistas” de Raimunda Pinto, desempenham brinquedo luxuoso e,
em partner consentido ou dialogismo do outro no olho da protagonista, fecham o
ciclo de licenças dramáticas à tragicômica leitura realizada por Regina e seu
elenco de peso e medidas concentradas.
Raimunda Regina está
rigorosamante engraçada, como sugere a rubrica autoral, mas carrega consigo
carisma natural da intérprete e muita estrada de tijolos amarelos ansiada e, é
claro, gastada pela arte do fingimento e exercício do convencimento ao ator
social integrante, personagem coletivo, guardado pela quarta parede
estabelecida em dramas e comédias. Sua Raimunda detém o átomo expandido em
energia pura e matéria desdobrada para reunificar a quântica da escolha da
profissão do fazer rir, comover e gerar reflexão através da arte.
À medida que a Raimunda Regina
vai sendo apresentada e o maior espetáculo da terra dramática se estabelece,
Chico Pereira vai desdobrando felicidade pleiteada por intérpretes e
personagens permitidas. Regina Duarte ao começar sua dramaturgia, pelo fim, de
“Ramanda” para “Raimunda Pinto”, retifica a quebra do paradigma da convenção e
reinventa ruptura da criação expiada. O texto dramatúrgico é muito claro como papel
de fidelidade ao literário.
A dramaturgia de cena conquista
um mapeamento requintado e recheado das alegrias e satisfações artísticas, numa
clareza de entendimento que parecia não ser possível a quem não carrega
vivência e sangue nordestino. Está quebrado outro paradigma. A montagem de
“Raimunda Raimunda” (Ramanda e Rudá/ Raimunda Pinto, Sim Senhor!) cumpre seu
papel com toda eficácia que o teatro inspira e exprime à cena viva.
Salvo os contextos lingüísticos
naturais e primitivos de qualquer sociedade, que estão presentes nas falas e
oralidade do elenco carioca, essa montagem, do eixo sul, está para Raimunda
Raimunda como o Harém está para a elogiosa ponte que o liga a atriz e, agora
também, diretora Regina Duarte. Como diria o Harém, está lá o homem brasileiro
no centro da cena e também um corpo cênico em corpus de renovação do encontro
com uma “velha” conhecida.
Momentos indispensáveis da
montagem, a alegria do circo que antecede a Miss Urânia e todo o corredor de
ascensão de Raimunda, em sua troca de maridos até a volta ao seu Ceará, como
metáfora da anacronia da natureza humana refletida. A projetada imagem da Bomba
Atômica que abre e fecha os ciclos de vida e morte de “Raimunda Raimunda”
sanduichiza os destinos de Ramanda e Raimunda Pinto. É limpa e economicamente
“ensurdecedora”, enquanto vai revelando maestria e desvelo ao cenográfico que
vem compor a saga realizada.
Os deslocamentos cenográficos, os
figurinos ágeis e representativos, a iluminação pertinente e sóbria que desenha
emoções transversais dão o tempo certo no doce oferecido à plateia. A pesquisa
musical e, de efeitos, brinda o cerne de brincadeira séria. Adereços
contundentes e vasos comunicantes de todo enredo. Cabe reiterar que o elenco
masculino nos prende com respostas muito divertidas para Oly, Goiabinha, O
encantador de Serpentes, Isaura e Lindalva, Presidente Getúlio, seu Gregório e
ampliam uma Raimunda muito classuda.
Talvez Regina tenha optado em
começar pelo fim, fazer uma inversão, indo do sonho e filosofia poética
(pós-bomba) à realidade de “agruras” sofridas pela leporina, para em primeira
sacada cunhar o + dramático e depois refrescar o ato + sério com a felicidade
contagiante daquela que antecede e testemunha a explosão atômica.
Também parece que a escolha tem
caráter de sobrevivência. “Ramanda” é + centrada na vida do “nada” em que estão
alçadas as personagens do fim do mundo e “Raimunda” exige toda energia e tônus
dinâmicos que mantenham a cena sempre viva. Finalizar a encenação com
“Raimunda” é concentrar todos os átomos para matéria que requer maior fôlego e
disposição para fechar o ato no mesmo nível em que começa.
A purgação da atriz culmina com a
da personagem Raimunda, quando + uma vez é resgatada pelo anjo Goiabinha que
lhe presenteia com as asas da redenção, após toda a força vital dividida entre
intérprete e personagem. As asas são negras, mas redimem em fins do ato de
licença do bem fingir.
Imagens e signos completizam vida
longa refletida pelas Raimundas, de Regina. O acento, dos corpos falantes,
contracena coreografias e massa cinzenta confluídas para simetrias e
assismétricos atos de criação. E não há nada que negue o fato de uma cearense
testemunhar a explosão da bomba. Sorte é que seja uma cearense que possa
regurgitar suas memórias dramáticas e interagir a licença poética do autor.
(Raimunda Raimunda/arte do cartaz)
Raimunda Regina Raimunda é fato.
Orgulha a prática do teatro brasileiro e religa sinapses à mímesis da história
do homem e sua memória da dramaturgia nacional. Vida longa à Regina!
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