Cadela Cinder(d)ela
por maneco nascimento
Outro dia, em incidental provocação da amizade, cruzei conversas diretas em horário de almoço com o ator, cantor, produtor cultural e polêmico Moisés Chaves, para os + íntimos, “Mocha”. Queria me emprestar alguns livros, na verdade, trocarmos interesses comuns pela leitura. Prometi-lhe um belo livro, romance trágico de autora piauiense, “Curral de Serras”, de Alvina Gameiro, natural de Oeiras - PI.
Em contrapartida de empréstimo, ele me adiantaria “A Casa de Isabel”, de Clara Mello; “No Nós & Elis – A gente era feliz – e sabia”, organizado por Joca Vieira e, “Reflexões de uma cadela vira-lata”, de Rivanildo Feitosa, publicada pela Mirabolante, obra primogênita deste jornalista, em que vou me deter nesse momento.
A cadela Sabiá que sabia que tinha alma de mulher, também (des) compunha-se em comportamento libertário, “vadio”, na busca de seu pássaro azul e, com objetivos fechados na conquista de seu sapatinho de cristal, por vezes pelo ilustrativo, hoje lugar comum, das “cachorras”, “vacas”, “piranhas” (aspeado para não ofender o animal), “vitaminadas”, “preparadas”, injetadas na música popular da periferia de centros urbanos e bailes funks e de forrós novidade, mas também de comportamento da “Geni”, licença poética do Chico Buarque, a que “dá pra qualquer um...”.
O novelo desvelado da saga da cadela vira puta, vira santa, vira ladra, vira lady, vira pobre, vira mulher, vai-se enredando para dias em casa simples, amada pela criança que acolhe e detestada pela mãe do menino que a despreza. Vida livre, dá-se com cães lazarentos, loucos, agressivos, amáveis, cães moleques sem saúde, mas especialmente dá-se ao prazer de ter prazer e, às vezes, escolher o “parceiro” cão ou lobo, ou lobisomem.
Rivanildo Feitosa, quem quis se enganar sobre ele perdeu a aposta. Tem uma escrita legal, inteligente, transversaliza pobreza, ignorância, mitos e lendas, vivências rurais e urbanas, ritos religiosos populares, sacros e profanos e mantém sua personagem entre o céu e o inferno em livre arbítrio, num fabuloso enredo, beirando ao real e fantástico, típicos da literatura latinamericana. Acerta bem.
Tem humor, construção de história coerente do universo escolhido e coesão aos padrões de escrita para bom entendedor seja rei nu, ou com trajes de chita. Comunica, diverte, atrai atenção à última página do livro e não mede escrúpulos para colocar palavras, de monólogo interior, na boca da cadela libertina e libertadora das próprias ansiedades e desejos (per) seguidos à flor do pelo.
Os discursos, ou polifonia embutidos, parecem refletir a vivência de observador e olheiro de narrador de terceira pessoa. Para vidinhas assépticas, “(...) A loira fica simplesmente abismada, por acharem que ela estaria entrando num espaço chique com uma simples cachorra sem raça (...)” (pag.98), ou sobrevivência maltrapilha “(...) Na primeira noite, com o Catador de Lixo Poeta, dormiu embaixo do Minhocão, disputando com outros sem-teto um pedaço de proteção da imensa ponte, (...)” (pags. 91/92).
A cachorra personagem reflete vida “cachorra” “(...) ia chegando mais um, mais outros em conjunto, formando um bando deles, muitos, de todas as idades, com uma diversidade de cores e de tamanho de pau, como ela gostava de apreciar para as constantes necessidades (...) depois de tudo que via e quando não tinha nenhum cão disposto (...) Preferia hoje os da nova geração – era só soprar que crescia, ficando duro feito ferro.” (pags. 103/104).
Em geografias de outros bichos, detidos no universo do cabeça da cadeia alimentar, em que o animal (ir)racional travestido de cadela/mulher deseja alçar-se ao nível dos iguais. “(...) Perdida e sem esperança, chega novamente ao bairro dos imigrantes – estava com saudade dos sotaques carregados. Dorme naquela noite e decora o caminho para uma outra necessidade (...) Viveu o que queria na Cidade Grande. Agora, planejava voltar o quanto antes.” (pags. 95/96)
Já pensa como humana “(...) ‘Sempre tem algum caça-talento à procura de novas estrelas. Caso tivesse que usar o corpo, cederia, até juntar uma grana boa para produzir o visual e comprar uns vestidos bacanas, (...)´” (pag. 88), comporta-se como tal e, em licença do fabuloso, realiza proezas pouco comuns ao bicho “inferior” e melhor amig(o)a do homem.
“Josué conduz Sabiá pelas ruas movimentadas e largas da Cidade Grande. É surpreendido pelos passos dançantes da cadela sempre ao ouvir um forró (...) Com isso, ele ganha alguns trocados bons, atraindo um público encantado com a cachorra, que rodopia alegremente e late ao som do mais fiel ritmo musical do sertão.” (pag. 92).
Talvez a pressa em editar o livro e ganhar o prejuízo da ansiedade e até deslumbramento de vaidade mal burilada, tenha deixado à outra margem do rio, da linha literária, certos atos falhos em escrito a feito de resultado impresso. Há algumas falhas de revisão que, para produto caro e de ilustração impecável (Fernanda Barreto), deixa uma sensação de que “havia um erro no meio do caminho”, parafraseando Drummond.
Um amigo, autor, observa que a obra entregue a um bom revisor teria preservado peça que caminha em linguagem do criativo. Creio eu que, desviada do senso comum da literatice e, com qualidades que se apresentam como obra a ser consumida não só pelo cuidado da escrita, como pela intertextualidade com que mantém o fantástico popular e outros personagens emblemáticos da velha e ótima literatura nacional, a cadela Baleia, por exemplo, outro animal humanizado, de Vidas Secas (Graciliano Ramos).
A cadela vira-lata, de Rivanildo Feitosa, de vida própria e decisões pensadas, uma fábula da anti-heroína que faz as próprias escolhas e determina seu destino para viver entre o sonho e a realidade, o fantástico e o romântico bucólico e ou dantesco, o metamorfo e a vida de cão com coleira livre.
E, em injulgadas reflexões, aponta sobre o parceiro, homem, seu escolhido, que mantinha preferências por cadelas, “Zeca nem se importava com os comentários. E chegava a ironizar, brincando com o ditado popular que diz ‘o melhor amigo do homem é o cão’. Ele completava – ‘o melhor amigo do homem solitário e tarado como eu é o cãoDELA’.” (pag. 136)
A fábula é dela, a borralheira escolhe parceiros e abandona o salto de cristal para viver prazeres e desejos (re)colhidos à própria sorte de mulher-loba ou cadela.
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