Rimbaud Direto da Fonte
por maneco nascimento
Um projeto de diretor de teatro maranhense trouxe, aos palcos nordestinos e memorial da cena brasileira, com endereço de São Luís (Ma), "Rimbaudemônio".
Enredo de "Ligações Perigosas", amores e paixões violentas, traições e violadas intimidades, poesia e licença profética de ruína e redenção, mito, lenda e vida real especulada, ou deixada à posteridade pelo encontro dos poetas Rimbaud e Verlaine em vivência do próprio contexto a dias inquietos do século XIX.
A montagem "Rimbaudemônio", vista em Teresina, na temporada de 16 e 17 de maio de 2014, no Teatro Estação, às 20 horas, tem Direção, Figurino, Iluminação e Cenografia do também ator Charles Melo. A peça reúne ousadia cênica e licença poética fabular ao inquirir o apagar do romantismo e surgimento da lírica moderna que já rompia paradigmas em Rimbaud e outros grandes nomes que erodiram o velho mundo.
Tradição e modernidade ganhavam novos focos, longe dos velhos pilares e perto do "Coração Selvagem" que pulsava inquietos bichos homens, girando a chave da própria prisão e percorrendo savanas na "caça de um novo leão no romper da aurora", quando ainda seria possível usar tal expressão sem cair no abismo do saudável e atual discurso de preservação da natureza, seja ela qual for, a do bicho, ou do homem.
"Rimbaudemônio" abre olhar de aproximação da poética do(s) artista(s) franceses, a partir de texto de Celso Borges. Na atuação, há Raimundo Reis, na pele do "demônio", apontado pela dramaturgia de cena, para mix de Verlaine, Alter-Ego de Rimbaud e senso comum questionado, e Ruan do Valle, nas vezes do Rimbaud no dramático apresentado.
Na fábula, Rimbaud desce ao inferno para despedir-se do "Demônio" e encontra local perfeito para regurgitar velhas memórias, desdenhar o próprio esforço em negar o inegável, a poesia que alça outro viés, sem deixar de ser poesia. Vida e morte, paixão e sexo, tragédias particulares e dramas de falha trágica, como requer qualquer enredo trágico com merecida catarse para desenredo d'algum, ou liberdade doutro, faz tema na história.
Para Charles Melo, "o Texto do Celso
Borges, apesar de todos os méritos literários, nos dava muito pouco de
indicações de ações cênicas, era um desafio em estado bruto. O que fizemos
então, com o texto parece muito com o que ele fez com o Rimbaud", diz, ao se referir ao dramaturgo, e completa "Traições,
colagens e iluminações ‘no palco’".
Da dramaturgia de cena, propriamente, Charles inclui outras mídias em gêneros textuais ampliados e aponta um prólogo em que Rimbaud desce as escadarias aos domínios de "seu criador". Esse primeiro momento, em vídeo, declina da força que o espetáculo ganha depois, no téte a téte.
Não por conta da mídia incluída na cena, mas por dessincronia do vídeo, áudio e, talvez, até da garimpagem de edição com pulos nas emendas, ou dublagem de som e imagens com descompensação da precisão tecnológica, depõe contra o espetáculo. Ideia transversal e representativa, mas com ruído no resultado da comunicação.
No inferno de "Rimbaudemônio", a cenografia cria, em arena propositada, intimidade entre público e personagens. Tão próximas as vidas expiadas, que os odores da trama impregnam todo o olfato da poesia regurgitada e materializada, nos intérpretes, e posta à mesa dos convivas. Almofadas vermelhas, vinho, tapete vermelho como soalho, um bar para "Drinks no Inferno" e telão que transversaliza discurso poético das personagens, de vidas reviradas, e falas complementares do(s) eu(s) lírico(s) de apropriação dramáticas.
(um drink à poesia/fotos Cia. Direto da Fonte)
Os coadjuvantes Erivan Nery e Luís Ferrara estão, à cena do inferninho de Rimbaud, aptos pela delicadeza da beleza física nua, economia de movimentação e textos corporais ensaiados que os deixam, no limiar de estarem à vontade, sem entrega ao apelo não reclamado, nem marca dramática de direção. Mantêm cuidado em não atravessarem a cena dos protagonistas.
Pecam pelo menos. Em não sendo personagens de "Satyricon", estão bem na fita, e despem-se no silêncio de não desagravar a própria ousadia. Controlam o brinquedo perigoso do drama sugestionado e, no inconsciente, parecem prendas de territórios conquistadas e que, em último ato, libertam-se do conquistador e rompem à liberdade de fim de cena.
Mesmo com o nu explícito, sem franca intenção de chocar pelo nu, ou atrair atenção pelo sensual e sexual em exercício de fingimento cênico, o espetáculo se concentra no teatro e os homens nus são consequência da escolha de dramaturgia.
Nenhuma versão sobre a vida amorosa, com licenças poetizadas, dessas duas personagens da história da poética francesa, deixou de fora o conturbado mundo de afinidades sexuais, paixão, violência, traição, curra, "Crime e Castigo" e abandono para ocasos e "Crepúsculo dos Deuses".
Traduções, ensaios, olhares e paixões declaradas ao universo rimbaudeano também ganham força denunciada de réu confesso ao calor da Cia. Direto da Fonte maranhense. O texto que dá corpo à dramaturgia é rico, contundente, poético, profético, escandaloso, divisor de águas turvas para novas fontes e cristalinas liberdades de expressão e quebra de paradigmas.
Epistemologias poéticas definem por onde caminham os artistas que encaram Rimbaud, de Celso Borges e Charles Melo, e às leituras que abrem a caixa de Pandora e revelam éden, ou submundo. "Flores do Mal" me quer, bem me quer, ganham prazer e fúria, dose de amor e veneno para almas artistas, dos intérpretes, que fingem as vidas d'outros artistas de contextos revisitados. Baudelaire, Goethe, Verlaine, entre outros, viram ontem no caminho das perdas e ganhos de Rimbaud ressignificado pela personagem de si mesma.
Raimundo Reis, compõe um "demônio", pintado de Verlaine, com densidade dramática e segura atenção ao texto e inflexões intensas para alma entre vadia, vingativa, apaixonada, dominadora e de fortaleza frágil diante da negação de seu poder pelo amante Rimbaud.
Reis mantém a linha, da personagem, sempre extensa e dentro dos paralelos de atuação. Perpendicula greenwichs e, na linha imaginária da interpretação, exige pecado indicativo e espiralado a meridianos acima, abaixo e no eixo que concentra fogo + na linha do equador.
Salvaguarda sentimentos over à construção da personagem que domina e, numa sincera crença na religião compensada pela experiência de ator, às vezes perde o sinal diverso do cardiograma. Sob controle da situação dramática pesa o drama e, sobre o controle da ação cênica, tem-se a impressão, nalgum momento, que quase desliza ao dramalhão.
Mas assume, com muita dignidade, a própria arte e o artífice de mentir na verdade de convencer. Um "Verlaine" demoníaco, mesquinho, conquistador da assistência ri à plateia. Raimundo Reis é ato sem medo de ser ridículo, logo ator expressivo.
O Rimbaud, alcunhado por Ruan do Valle, tem o risco das pequenas maldades, do domínio da paixão controladora, do amante manipulador e da imberbe energia que migraria ao entendimento do ator. "Nosso Rimbaud é um menino sensível e confuso", aponta a direção do espetáculo.
Ruan do Valle traz para o Rimbaud maranhense a beleza, a juventude que perfiliza a personagem e, na opção da dramaturgia de manter o ator nu durante quase todo o enredo, uma segurança e confiança em estar em pelos. No que parece um ímpeto involuntário de vaidade, Ruan perde a melhor chance de ganhar o poeta que a dramaturgia textual confessa e que a de cena propõe, por mirar-se na lagoa da própria performance.
(Ruan do Valle é Rimbaud/fotos Cia. Direto da Fonte)
Há, na postura corporal do ator, uma inconsciente demonstração do próprio sexo, como sugestionada presença demonstrativa de vaidade premiada. Como o corpo fala, a púbis angelical fica + forte que a personagem. Como não parece ser tema da dramaturgia o apelo de homens nus, o teatro buscado pela assistência é enfraquecido na performance do intérprete. Mas nem tudo fica na sensual estética, de narrativa sexual, a fórum individual.
As falas da personagem andejam entre o capricho de garoto mimado e a busca conflituosa que partem do ator e, em pequenos momentos, comovem pela proximidade rimbaudeana de um possível adolescente que orbita os sentimentos poéticos da alma em fuga potencial do poeta. Valle pesa o que valida a própria experiência. Interpõe-se em jogo dramático e joga as pedras que possui.
"A poética da palavra foi complementada pela poética do gesto, da imagem,
dos sons e da própria existência das personagens (...)", diz o histórico da montagem. É com a mesma segurança com que se impõe nu, sem demonstrar qualquer incômodo, que Ruan do Valle se movimenta e gesticula na apreensão da personagem construída. Os gestos gastos monocorditam as vozes do corpo. As falas de seu poeta demonstram arroubos de intenções e afobados sentimentos que traem melhor performance.
Ainda assim, há felizes momentos de sua construção da personagem, quando Rimbaud, em seu Rimbaud, se encontram e se despem das próprias falhas e ganham humanidade. Nessa licença, Ruan come por fora da lição de cor e, como defende o diretor do espetáculo, "a peça como um todo parece
dizer que, com a partida de Rimbaud para a África, o romantismo do século XIX
está definitivamente morto e enterrado. Ele deu o seu recado: É
preciso ser absolutamente moderno".
O desenhador de cena, Charles de Melo, tem razão. O moderno se estabelece na atitude do poeta e na ousadia da dramaturgia conquistada no intercurso da encenação e na entrega dos atores que interpretam o planejado.
(amores violentos em Rimbaudemônio/fotos Cia. Direto da Fonte)
Metalinguismo aproxima cinema e teatro e, nas falhas humanas, mistura carinho violento, embriaguez e poesia, nudez
e sensualidade postas à prova.
"Rimbaudemônio” tem Figurinos eficazes; Iluminação centrada no drama e pertinente às dores e amores entre céus e infernos da paixão e poesia; a Cenografia cumpre o desenho e ilustra o enredo; a Direção interliga pesquisa e esforço inteligente. Ainda completam os efeitos técnicos, da montagem, a Fotografia de Evandro Martin e a Edição e Som, de Edemar Miqueta.
"Rimbaudemônio" é pura ousadia em vozes poéticas. Rimbaud e Verlaine vivem Direto da Fonte, no esteio da cena maranhense.
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