2 horas de espetáculo marcaram o resultado da segunda turma de alunos, formados atores,/atrizes a nível técnico, na Escola Técnica de Teatro "Prof. Gomes Campos", nesta última sexta feira. A encenação demonstrada na noite do dia 27 de junho 2014, às 19 horas, no Theatro 4 de Setembro, assinala atuação para "O Rei da Vela", revisita à obra original de Oswald de Andrade, um dos pilares da Semana de 22.
A cenografia que incorpora dados da carpintaria dramática original se apresenta para escritório, porto aduaneiro de negócios e trocas financeiras, empréstimos e agiotagem. Na ambientação, mesas e cadeiras, armários, cadeia construída com varas de bambu verde e cama de descanso, caracterizando também área doméstica no espaço de negócios e futuros.
Elementos práticos de contrarregra (caixas de papelão, praticáveis/escadas com degraus variáveis, cadeira de roda transformam, de ato a ato da peça, a cenografia que muda de escritório para navio de passeio e, de volta à sala de mercados e comércio.
A pesquisa musical e o entrosamento do elenco que distraem a mudança de cena, enquanto as personagens/atores/contrarregras reorganizam o ambiente do próximo enredo, é de ligeiro e inteligente mote de ação para não cansar a assistência e manter a energia alegre em margens de aproximação do antropofagismo hilariante e devorador da atenção, no modernismo oswaldiano de fase heróica.
Os sons que passeiam pela dramaturgia abrem característicos de identificação com o movimento manrinetti e futurismo, vanguardismos musicados e inquietações das luzes das escalas industriais e urbanismo que vinham substituir, não sem resistências, os velhos vícios de tradição agrária e cultura colonial.
As batidas percussivas, em madeira e pandeiro discreto, produzidas por atores, que se instalam ao fundo do escritório, são afeitas à representação das máquinas que não param, trazem não só esse moto-contínuo da aceleração de produção industrial, como também de batuques tradicionais com referências de afrodescendência ritmadas.
Os figurinos compõem boa marca de contexto estético de tradição desdenhada e decadência disfarçada nas alegorias e carnavalizações modernistas. Têm força de emblemas e ilustrativo composicional que não comprometem a trama agilizada pela direção de Chiquinho Pereira e o drama ensaiado para risos e reflexão.
As falas sociais plantadas, nas vozes dos intérpretes, têm não só melhor compreensão dos atores como trazem maior comunicação com quase nenhum ruído à plateia integrada no resultado planejado às duas horas de mergulho em " O Rei da Vela". Há um equilíbrio de debutantes da cena, mais tranquilidade na realização do exercício do exercício e fortaleza sendo erigida com tempo de entender e regurgitar o enredo que ora se lhes é posto à prova.
Atores e atrizes empertigam alegria de boa atuação, na média da aprendizagem da arte de fingir, e criam interesse do público na conclusão dramática, mesmo que as duas horas pareçam + extensas, haja vista a pequena experiência dos intérpretes não destrinchar, ainda, a destreza natural de domínio da cena aberta e do deslizar da ação cênica maturada.
Mas a montagem estudantil de "O Rei da Vela" cumpre o teste escolástico e inicia estudantes à nova empreitada de correr palcos e repercutir o que tenham apreendido na sala de aula, em teorias dramáticas do ato de ser artista da cena.
Já aprenderam a lição de cor e foram facilitados aos dotes da magia do bom fingir, agora é só estreitarem o mergulho de ciência e do sensível e ganharem identidade de aprendizes de feiticeiros.
Resumo: O Rei da Vela
"No título da peça, a palavra vela significa agiotagem, isto é, empréstimo de dinheiro a juros extorsivos. O protagonista, Abelardo I, é proprietário de uma firma de agiotagem, a Abelardo & Abelardo, que serve de cenário para o primeiro ato da peça. Seu sócio, Abelardo II, vestido de domador, recebe clientes que saem de uma jaula. Os devedores são tratados com desprezo e violência. Aparece para uma visita Heloísa de Lesbos, noiva de Abelardo I, pertencente a uma família tradicional, salva da bancarrota pelo dinheiro do noivo.
O segundo ato tem como cenário uma ilha tropical, presente de Abelardo I à noiva. Instala-se ali um clima de grande liberdade sexual: Heloísa troca intimidades com Mr. Jones, americano com quem seu noivo mantém alguns negócios e que desperta interesse em Totó Fruta-do-Conde, irmão homossexual de Heloísa. Abelardo I vive uma noite de amor com a sogra, Dona Cesarina, e acerta outro encontro sexual com a tia da noiva, Dona Poloca, cuja virgindade sexagenária é proclamada a todo momento. Há ainda a presença de João dos Divãs, na verdade Joana, a irmã lésbica de Heloísa, e de seu primo Perdigoto, que arranca um empréstimo de Abelardo I, destinado a montar uma milícia fascista para combater os camponeses que insistem em invadir sua propriedade.
O terceiro ato retorna ao escritório de Abelardo & Abelardo. Vítima de um golpe, Abelardo I lastima sua falência, tendo a noiva aos seus pés. Com um revólver nas mãos, dirige-se aos espectadores e declara que eles assistirão a um final digno de dramalhão: suicídio no terceiro ato. Sem conseguir levar o gesto adiante, pede ajuda ao Ponto (auxiliar de cena que, escondido do público, lembra ao ator as suas falas quando necessário), mas este se recusa a auxiliá-lo. Fecha-se a cortina do palco. Ouvem-se salvas de canhão e um grito de mulher. Quando a cortina reabre, Abelardo I está agonizando sobre uma cadeira e a noiva deitada em uma maca.
Entra em cena Abelardo II, com exageradas vestes de ladrão, que substituem as de domador usadas no primeiro ato. Ele assume sua condição de herdeiro dos negócios de agiotagem, ficando também com a noiva. Abelardo II tenta presenteá-lo com o socialismo, mas Abelardo I recusa, chutando um rádio que toca a canção da Internacional Comunista.
No delírio que antecede a morte, Abelardo I ouve sinos. Determina que a jaula seja aberta, e os devedores fogem, proclamando a vitória da revolução. O suicida pede uma vela. Seu desejo é atendido e ele morre.
Heloísa chora a morte do ex-noivo. Mas a um gesto de Abelardo II, aproxima-se dele prontamente. Ouve-se a Marcha nupcial, convidados entram e, ignorando completamente a presença do defunto, celebram o casamento de Abelardo II e Heloísa de Lesbos."
CONTEXTO
Sobre o autor Oswald de Andrade formou com Mário de Andrade a dupla de liderança do movimento modernista de 1922. Algumas de suas experiências literárias, notadamente aquelas produzidas sob o efeito de compromissos ideológicos mais explícitos, apresentam formas mais tradicionais. No entanto, o melhor de sua arte é, sem dúvida, a renovação da ficção brasileira, tão intensa que o tornou incompreensível aos seus contemporâneos e, para muitos, ainda hoje.
Importância do livro A importância e a força de O Rei da Vela pode ser medida pela dupla condição de marco cultural que a obra possui. Escrita em 1933, foi pioneira na aplicação ao teatro dos conceitos mais radicais do vanguardismo estético defendido por Oswald e seus colegas desde a Semana de Arte Moderna de 1922. Encenada apenas em 1967 pelo grupo teatral Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Correa, também causou uma verdadeira revolução na arte dramática brasileira.
Período HistóricoO teatro não ficou imune à renovação estética que teve em 1922 um marco importante. No entanto, a transformação se limitou ao texto, as montagens permaneceram presas às convenções até a década de 1950. Sob roupagem moderna, Oswald de Andrade trata de problemas velhos (domínio estrangeiro, cultura colonizada, dependência da monocultura) e novos (urbanização acelerada, refinamento de formas de exploração).
ANÁLISE
A montagem que o grupo Oficina realizou de O rei da vela, em 1967, exacerbava elementos sugeridos pelo texto, como o circo em que é transformado o escritório Abelardo & Abelardo, insinuado pelo autor pela inclusão de uma jaula como parte do cenário e na roupa de domador usada por Abelardo II. No segundo ato, a atmosfera de pansexualismo determinada pelo enredo deu oportunidade a José Celso para se utilizar de referências ao teatro de revistas do baixo mundo carioca. O fato de a atmosfera grotesca já estar presente no texto original de Oswald constata a radicalização do projeto modernista do escritor, manifesto tanto no plano político quanto no estético.
Politicamente, a peça é resultado dos contatos de Oswald com a ideologia marxista e com a sátira aos valores burgueses que sempre acompanharam sua obra, aspectos evidentes na postura conservadora assumida por Abelardo I. Em certa passagem, ele se manifesta a respeito do comportamento que os industriais deveriam ter diante do avanço da classe operária: “Manter vigilância rigorosa nas fábricas. Evitar a propaganda comunista. Denunciar e perseguir os agitadores. Prender. Esse negócio de escrever livros de sociologia com anjos é contraproducente. Ninguém mais crê. Fica ridículo para nós, industriais avançados. Diante dos americanos e dos ingleses.”
Ainda em outro momento, dirigindo-se a um intelectual, declara: “A minha classe precisa de lacaios. A burguesia exige definições!” A sátira burguesa se mostra tanto nas personagens que aparecem na peça quanto naquelas que são apenas referidas, como certa Dona Etelvina, parenta que costuma viajar com a radiografia dos intestinos, consultando celebridades médicas que encontra pelo caminho.
A peça dialoga com o momento histórico brasileiro, que vivia a transmissão de poder das mãos da burguesia rural para as da financeira. O fato de os dois grupos sociais se unirem pelo casamento sugere uma identidade profunda entre eles. Além disso, a onipresença de Mr. Jones pode ser associada ao imenso poder do capital estrangeiro, determinante na condução da vida econômica brasileira, daquela e de todas as épocas.
Do ponto de vista formal, a peça de Oswald também radicalizava com sua linguagem forte e mordaz e com a colagem realizada a partir da articulação de uma multiplicidade de referências culturais. A quebra da ilusão teatral na cena em que o Ponto dialoga com as personagens produz um efeito metalinguístico de grande ousadia.
Destaca-se a exploração da dimensão simbólica de personagens e objetos de cena. No que diz respeito aos segundos, temos, por exemplo, a jaula como prisão dos devedores, associados, portanto, a animais servindo ao entretenimento público (tanto o burguês quando o próprio espectador da peça). Ou ainda a faca nas mãos do intelectual Pinote, que pretendia dar uma “facada” (gíria usada para referir um empréstimo) em Abelardo I. Quanto aos nomes, basta que lembremos a protagonista Heloísa de Lesbos, denominação sugestiva da pansexualidade familiar que se pode aplicar à sua família. Mas há também Mr. Jones, representação óbvia do capital estrangeiro, cujo interesse financeiro é explicitado na peça. É dele a última fala, ao celebrar o casamento de Heloísa com Abelardo II: “Oh! Good business!” Fonte:(Fernando Marcílio/Mestre em Teoria Literária pela Unicamp/http://educacao.globo.com)
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