por maneco nascimento
"Contar aquela história significaria preservar a memória da cidade. Os piauienses precisam conhecer a história de seu Estado, suas tradições, seus costumes, suas lendas. Isso é o que fortalece um povo. Os piauienses fazem o contrário: desprezam sua história, suas lendas, seus costumes e o resultado do trabalho de sua gente." (Nolêto, Alexandre Christian de Jesus. Herança Sombria. Teresina. Edições do Autor, 2013. 312 p.)
(autor em apresentação da obra a alunos da FSA/fonte: www.fsanet.com.br)
A trama se interpõe em 26 anos de narrativa e a ficção realiza passeio pela construção social de Teresina até meados de 1930. O início se dá com a partida, da cidade de Floriano, de uma das personagens chave. Lucas e a família se instalam na capital do estado para que seu destino cruze, no futuro, com outra personagem significativa, ribeirinha do Velho Monge e antagonista dos segredos, mistérios, crimes e investigação policial.
Dois destinos, duas histórias e algo em comum os marca em infância. Ambos são órfãos. O filho do fazendeiro de Floriano e o filho de um pescador do rio Parnaíba, na velha Teresina. No futuro, a cidade, os costumes e as relações sociais e os contextos provincianos, da Teresina em ascensão, vão reunir novamente as duas personagens para desfecho da "Herança Sombria".
A cidade se constrói às margens dos rios Parnaíba e Poty, com suas lendas urbanas e ribeirinhas e salto social de quem construiu a comunidade com suas ruas, comércio e negócios, escolas confessionais de tradição, praças e logradouros públicos e as representações sócio culturais da Teresina de início do século, quando vai tomar ares de primeiras novidades e sinais de modernidade.
Um pescador e um herdeiro de donos de terras, de cidade do interior, que migra à capital, reúnem-se no destino da Teresina contraída para amores, paixões e traições, crimes passionais e castigo rogado, rejeição, ódio, perversão e perversidade operacional na construção do romance de investigação policial.
O enredo dramático junta uma comunidade em seus dias contumazes de província, a pessoas religiosas, respeitadas na sociedade e, como a cidade ainda iniciava seu crescimento, todos podem topar uns nos outros e despertar curiosidade, suspeitas, falatórios e intrusão na vidinha comum alheia.
Arquétipos e inconscientes coletivos intrinsecamente incrustados nos destinos da sociedade mafrensina retratada. De provinciana a início de modernidade, destinos de mulheres são definidos pela fúria louca de monstro forjado à sujeição da própria sorte e nascido das margens do rio Parnaíba.
Nesse contexto ocorrem crimes em série. Um matador, de aluguel da própria patologia, sevicia mulheres e as mata em seguida, com requintes de crueldade e características peculiares a todos os homicídios. Estuprador que morde as vítimas e as posiciona voltadas, na cena do crime, a pontos cardeais de norte e oeste.
Crime quase indissolúvel, mantém o delegado Lucas sempre no stress da desconfiança a cada homem que tenha características, nebulosamente testemunhadas por uma sobrevivente. O enredo sempre desnuda suspeitas e fecha novos homens à área de suspeição. Abre um leque de possibilidades que os bons romances policiais trazem. O desfecho vai-se afunilando para um (in)suspeito e o impacto do desvendamento vai se apropriar de uma das + tradicionais e identitárias lendas piauienses, o Cabeça-de-Cuia.
A personagem serial killer, bipolar, é perseguida pelas memórias de remorso, culpas, pecados e redenção presumida durante as orações, de anjo vingador, que rotinizam o ato criminoso antes de fazer a próxima vítima. A contextualização histórica local detém espaço também para a lenda da Não-se-Pode e, na regional, abre incursões por relações de encontro com personagens emblemáticas brasileiras, como Padin Ciço e até com o testemunho de Lampião e seu Bando, em visita ao beato e político do sertão nordestino, Padre Cícero Romão.
A escrita de "Herança Sombria" beira a uma linguagem que não perde estreito de quase academicismo e ou de expressões particulares de advogados e delegados de polícia, sem aproximação com falas + simples e coloquiais à prosa que se pretenda + popular. Termos científicos e de saúde perdem espaço de atração do público leitor + ávido de linguagem direta, concisa e nunca explicativa didática.
As narrativas dos crimes são o que de melhor traz acerto na proposição de crimes de romances policiais. Conseguem prender o leitor em potencial e tem força descritiva e monstruosamente aprisionadora do desfecho das mortes à impotência de fuga da vítima e leitor.
O determinismo realista imprimido à obra afasta, naturalmente, a trama de qualquer romantismo estanque e o pragmatismo policial de observação, ou de experiência do autor, acaba por determinar construção de prosa inteligente, atual contextualizada em períodos de memória social de Teresina, e factual como crônica reconstrutiva da realidade local ficcionalizada, em intertextual com mitos, lendas, contos e história oral transitórios das sociedades mafrensinas em construção da mesopotâmia nordestina.
O personagem narrador, em vezes, acaba imprimindo comentários que particularizam distanciamento, do narrador original, para dar margem a comentário que atualiza o tempo (do passado) com o observador do tempo real (presente/futuro), comparativos das duas cidades, a de ontem e a de hoje.
Obra de entrada a novo prosador piauiense, detém energia e tato construtivista para atrair atenção de leitura e abrir canal de comunicação social ao surgimento de novo autor à seara da literatura nacional.
"Contar aquela história significaria preservar a memória da cidade. Os piauienses precisam conhecer a história de seu Estado, suas tradições, seus costumes, suas lendas. Isso é o que fortalece um povo. Os piauienses fazem o contrário: desprezam sua história, suas lendas, seus costumes e o resultado do trabalho de sua gente."
Discurso didático da personagem Lucas (pág. 303), o delegado investigador da cidade, em suas últimas impressões registradas em "Herança Sombria - Quando nada mais importa, de tudo se é capaz..."
(fonte: www.fsanet.com.br)
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