por maneco nascimento
De significados e significantes a humanidade abre novidades, quebra paradigmas e amplia conceitos na dialética de aproximação sócio cultural. Do léxico aos desdobramentos das falas sociais e polifonias bakhtinianas recupera-se o discurso de identidade e de r(e)xistir.
Dos significados a significantes tem-se para Bagaceira como,
I. bagaceira, substantivo feminino, 1. cova ou tulha onde se junta o bagaço da uva. 2. área em torno dos engenhos de açúcar onde se espalha o bagaço da cana moída, para que seque e seja usado como combustível nas fornalhas; bagaceiro.
II. A Bagaceira, "A Bagaceira, de José Américo de Almeida (1887-1980), publicado em 1928, é considerado o marco inicial do regionalismo brasileiro. Nas palavras de Guimarães Rosa, José Américo de Almeida "abriu para todos nós o caminho do moderno romance brasileiro". É uma trágica história de amor que funciona como uma denúncia sobre a questão social no Nordeste (...) O romance se passa entre 1898 e 1915, os dois períodos de seca. Tangidos pelo sol implacável, Valentim Pereira, sua filha Soledade e o a filha do Pirunga abandonam a fazenda do Bondó, na zona do sertão. Encaminham-se para as regiões dos engenhos, no rejo, onde encontram acolhida no engenho Marzagão, de propriedade de Dagoberto Marçau, cuja mulher falecera por ocasião do nascimento do único filho, Lúcio (...)" (www.onordeste.com/acesso 20.07.2015 às 18h56)
III. Grupo Bagaceira de Teatro. Fundado em 17 de maio de 2000. Grupo de teatro experimental que, através de espetáculos autorais, vem construindo uma linguagem peculiar. Misturando referências plurais de forma inusitada, o grupo conseguiu associar suas provocações conceituais a uma comunicação acessível, conquistando, assim, a simpatia de público e crítica. (fonte: página oficial do Bagaceira/acesso: 20.07.2015 às 19h03)
Das acepções, para sentidos de uma mesma palavra, ao teatro e à práxis da dramaturgia de cena viva e admirável a quem não perdeu-se na pura razão e manteve a sensibilidade liberada para sentir, ser teatro e recepção de identidade dramáticas, é que se faz verbo encarnado, de deuses profanos, a pérola "Interior".
O Grupo Bagaceira, de Fortaleza, Ceará, abriu diálogo cênico com o Piauí, através de Projeto Circulação MINC/Centro Cultural Banco do Nordeste. A chave de ouro escancarou as portas à recepção, em curta temporada de dois dias, 18 e 19 de julho (sábado e domingo), no Espaço Trilhos/Teatro Estação (Miguel Rosa com Frei Serafim, antiga Estação ferroviária - RFFSA).
(público concentrado nas contadeiras de histórias/foto: Soraya Guimarães)
A peça "Interior", com toque de midas a efeito dramático, arrebatou a assistência que pode comparecer às sessões, marcadas para as 19 horas e a público de sessenta pessoas, por noite. Como disse um dos atores do Grupo, estava sendo um grande prazer estar em Teresina. Já haviam viajado o país inteiro e Teresina ainda não tinha sido contemplada, até aquele momento, com o teatro do Bagaceira.
(público da "Interior", dia 19.07.2015/foto: Rogério Mesquita)
Dupla felicidade por ele, o ator, ter troncos familiares na cidade. Dessas referências interiores, de geografias humanas aproximadas, às referências de "Interior", com Texto de Rafael Martins e Direção de Yuri Yamamoto.
O espetáculo não tem palco tradicional. A cenografia (Yuri Yamamoto), um corredor com chão de ladrilhos, piso perdido na memória de outros tempos, ladeado por duas arquibancadas (com franjinhas de fitas de rendas), em que o público é acomodado.
(cenário de "Interior", no Teatro Estação/foto: Soraya Guimarães)
Em determinado espaço das arquibancadas, lado a e b, uma reserva de assento, por colcha (colchonilho) bordada com flores artificiais. Nesses locais "consinados" sentam-se as personagens contadoras da própria história de driblar a morte e o tempo.
Os figurinos (Y. Yamamoto) acompanham as largas, longas e rodadas saias floridas, floradas, estampadas, de chitões de tessitura colorida das vestimentas populares e dos design da simplicidade e elegância naturais das roupas, de peças folhadas, sobrepostas.
Das saias aos casacos rendados e de crochês, aplicados sobre tecido, ao kit de casaquinho a la chanel de apropriação da moda da vovó. Roupas arraigadas no vestir-se bem e conter identidade de nordestes expandidos. Completam o figurino, xale sobre os ombros e o pano tradicional de amarra na cabeça à feita de costume rural.
Das idades sobrepostas sobre a efígie do tempo, a primeira pele das personagens está abafada por segundas e terceiras peles, as folheadas por tecido colorido a esconder a verdadeira idade das velhinhas.
Sob as vestes, a verdadeira idade da razão das personagens, entre o tempo de existir e resistir ao tempo e, na dialética de atração ao dramático, a revelação ou esconderijo da personagem da personagem, da mulher idosa (personagem) à mulher (atriz) que conta a história do tempo das personagens em fuga do próprio tempo. Fuga, diga-se de passagem, lúdica, muito humorada, sem pressa e em exercício do fingimento a muita felicidade cênica de realização.
(a velhinha + nova/foto página oficial Bagaceira)
A maquiagem, uma máscara dramática, de introdução das personagens em cena. A efigie encarquilhada, das rugas marcadas pelo tempo, na apresentação de entrada é substituída, em licença poética, pela cara limpa das velhinhas em seus trejeitos sutis e de economia de construção da personagem sem exageros, nem caricaturas, feições limpas e claras, cristalinas, das oralidades corporais do rosto reproduzidas em gestos e "deficiências" físicas da idade que marcam as idades de qualquer avó das memórias afetivas de qualquer um(a) da plateia.
Os adereços acompanham pesquisa que nunca perdem o fio de ariadne, nos labirintos das composições estético plásticas da direção de arte do espetáculo. A primeira velhinha carrega consigo uma sacola a tiracolo, com ervas aparentes, saindo pela boca do "matulão".
Às costas, na corcova da velhice, uma mochila de tecido algodão em que carrega uma viola rural. Das surpresas retiradas da sacola da vovó, pedaços de bolo de canela, oferecidos aos netinhos (público). Limpinho, como elas defendem, e dado com muito amor aos presentes.
A segunda mulher, a + nova, neta da primeira velhinha (a "morta" que sempre volta da cova), traz em seus badulaques de lembranças um rádio, à pilha em que toca velhas canções "muito lindas", alimentado por uma cartão de memória de dois gigas; uma mala de guardados; uma bolsa maleta elegante e, dentro de uma das bolsas/malas uma pequena malinha (baú).
(as peles que vestem a primeira pele/foto: Rogério Mesquita)
Das atenções ao público, apresenta um caderninho de notas e caneta e sugere à assistência que, cada um(a) presente, escreva o nome da avó e local em que esta nasceu, e coloque no pequeno baú, mas nessa ordem, "primeiro o nome, depois o lugar em que nasceu... primeiro o nome, depois o lugar em que nasceu..."
A velhinha neta, como sua avó, também traz em seus guardados, pedacinhos de bolo enrolados em guardanapos e servidos ao público. As ideias recorrentes, de memória e ação reproduzida, passadas de geração a geração, repetindo a marca de cultura afetiva familiar de agrados e culinária dosada aos seus.
A primeira velhinha que entra à cena, a + velha e já "morta", ao liberar-se do cansaço, quando senta, retira os kichutes e, de dentro do sapato, o peso do tempo sob seus pés calçados (areia derramada na cena). As histórias contadas, da primeira, e o encontro das duas e as tomadas de turno na contagem das próprias memórias, interligadas, se confundem, se completam.
De suas caixas (malas, sacolas) de surpresas, a + velha retira retratos de seus antepassados, pessoas comuns e rurais, e a neta também mostra sua hereditariedade, representada por divas do cinema mundial.
Da genealogia iconográfica pessoal elas interagem com o público, solicitam que este mostre fotos de suas avós que contenham nas carteiras. Um, dentre tantos momentos sublimes. Das fotografias analógicas às de suporte digital e dialogismo de linguagem.
Na sequência, recolhem o pequeno baú das mãos do público e passam a ler nomes, das avós, e locais de nascimento registrados nas folhinhas do caderno de notas. É hora dos depoimentos da memórias afetivas do público. Muitas surpresas e comoção real. Outro, entre momentos de desarmamento de público.
Segue, o espetáculo interativo, vigorosamente, sem apelo nem pieguismo, até desembocar "no que você faria daqui a 50 anos". + um momento lindo, enternecedor.
Em riscos de finalizar o espetáculo, embora desejem ficar +, partem das velhas dos sacos, numa disputa por eles, e culminam em canções, de repentes e ritmo popular pregoeiro da feira, até a música de despedida em que as atrizes desmancham as personagens e retornam a elas, com uma qualidade de "desmanche" das composições em que mantêm a sobriedade, da atriz à personagem e da personagem à atriz. Numa palavra, maravilhoso.
As atrizes Samya de Lavor e Tatiana Amorim são impagáveis, têm uma química que viraria uma tabela periódica se o assunto fosse ciências exatas. Mas como é teatro da melhor qualidade, a alquimia do elenco, que ainda reúne Rafael Martins e Rogério Mesquita, às vezes de hostess e meninas do baile/festa provocado pelas velhinhas, é de natureza inconfundível de teatro vivo.
"Interior" revela o interior e, das melhores e maiores memórias afetivas, e exterioriza arte em plena acepção da palavra de significados e significantes de dramaturgia de ciência do lúdico, sensibilidade, teatro aplicado a reflexão e recuperação da humanidade perdida e revelação apropriada de uma das + tradicionais e milenares artes de revelação do espírito, a práxis de encenar.
Daqui a cinquenta anos, nos meus cento e três bem vividos dias de primaveras de qualquer estação, quero estar bastante ativo para poder interagir com o teatro repercutido do Grupo Bagaceira.
"Interior", peça de repertório do Bagaceira, está entre um dos + delicados e fascinantes exercícios do teatro brasileiro marcados, desde já, em meu baú de memórias afetivas da cena nacional.
Evoé, Bagaceira!
Nenhum comentário:
Postar um comentário