em Luciano Brandão
por maneco nascimento

Uma pérola do corolário
nelsonrodrigueano, “Anjo Negro”, de 1946, salta de seus setenta anos de boa
vida desempenhada e revigora-se em arte teatral viva, pulsante quente.
E, neste contextuado de pouco + da primeira
quinzena do século 21, pelas mãos de Luciano Brandão e elenco afiado, a montagem se alinha na sagaz
compreensão de Nelson Rodrigues, com toda propriedade de mergulho na aura do
nosso “Flor de Obsessão”.

Mas, a reabertura do Boca da Noite, versão 2016, acabou adiando a segunda apresentação da peça. Reagendada a nova data, quem não viu, fique na mutuca.
A direção de Luciano Brandão
concorre para afinar a dramaturgia pragmática e direta de Nelson Rodrigues.
Densidade e leveza equilibradas, na matemática lúdica de paixões, amores e
traições, crimes e pecados, sentimentos perversos e perversões degustadas, definem
o tabuleiro dos jogos dramáticos, desenhados na linha divisória do xadrez
emblemático e na realidade licenciada aos trágicos destinos da mítica “Anjo
Negro”.
A dramaturgia de palco, maturada
por Brandão, é inteligente, síntese de dramaticidade limpa, e consegue fazer-se
compreender claramente, sem recorrer a estereótipos, Nelson odiaria, e abre
outras margens a gestos, posturas, fisicalidade econômica e empertigada das
personagens que vociferam silêncios e silenciam exasperos, na feliz escolha de
melhor contagotar o obsessivo amor de perdição em Rodrigues.
(amores e traições nelsonrodriguenos/fotos: GT"Procópio Ferreira")
O cenário de portas vazadas e
dinâmicas que revelam e escondem, simultaneamente, os dois lados da vida como
ela é em “Anjo Negro”, é perspicaz. A engenharia de mover as passagens de
fugas, portais a ambientes distintos e transparentes, tem o pulsar da vida das
personagens que estão dentro e fora da história mostrada e vivem à expiação das
intimidades, enquanto a recepção as espia e se estarrece a cada regurgito
nelsonrodrigueano.
Ainda cenário, na completude
dramática, duas camas. A do casal e da traição e a do estupro, esta pendida do
teto feito troféu da memória do macho alfa sobre sua presa valiosa. Duas
cadeiras de encosto alto ambientam a sala; um cabide de pé colonial estilizado
que recebe as vestes do médico negro e uma mesinha (criado mudo) da alcova do
casal).
Completam a cenografia as
personagens que se mimetizam com o ambiente deslocável e aplicável às feições
de pequenas tragédias degustadas. Os figurinos estão à medida de composição das
psicologias e sombras e luzes das personagens e imergidos no jogo dramático de
cores, tecido, segunda pele arqueada às efígies do(a)s narrrado(a)s da esfinge
nelsonrodrigueanas.
A música casa com sala, quarto e
cozinha enlameados do universo obsessivo do pai do teatro moderno brasileiro. E
a luz vai se afinizando para claros e escuros que escondem e revelam as
verdadeiras faces de “Anjo Negro”.

Clerys Derys (a Tia de Virgínia)
amplia experiência de mergulhos em Nelson e nos apresenta uma erecta e fria
senhora dos segredos de afogados e outras perfídias. Andeja pela cena, feito
harpia devorando o fígado quente da presa dominada. Gestos detalhados e
inflexões seguras de quem ouve o reverbero do monólogo interior.
Ronyere Ferreira (Elias, o irmão
branco e cego de Ismael) é de uma delicadeza atualizada de bem compreender a
personagem. Doce e suave na compleição da ingenuidade cheia de visões
românticas. Desliza falas com muita competência de viver a personagem e
debulhar verdades no ofício do fingimento. É doce ver o cego desfiar tanta
ternura e muita fidelidade a Rodrigues.
Gleiciane Silva (Ana Maria, a
filha branca e cega do triângulo das traições, Elias/Ismael/Virgínia) uma
presença viva das adolescentes constantes em obra de Nelson. A perversa
inocente, ou a criança alçada à maturidade na força de intempéries da catarse
instalada. Gera o segundo Anjo da trama, com muita eficiência. Cegos, os dois
anjos, (Elias e Ana Maria) enviesam as veredas de perdição em amores sem
redenção nelsonrodrigueanos.
Angélica Araújo (a empregada Hortência)
um misto de esperteza e atabalhoado, de dosar falas que exercem natureza de
humor mórbido e sutil, e alfinetar a presa e extorquir silêncios dos segredos
xeretados. É a quebra, o refresco e refrigério na tensão dramática instalada.
Faz bem seu tempo de ser e estar em Nelson.
“Anjo Negro”, pela ótica de
Luciano Brandão, atualiza o universo de Nelson, mantendo fidelidade de moderno
e instigante que há em Rodrigues e inteligencia o contingente de linguagem e linguística
apuradas à melhor feição de teatro vivo e detalhado na ciência arrazoada na
sensibilidade e estética cênicas.
Parabéns ao Luciano e ao GT“Procópio
Ferreira”. Há algo de novo no ar e a palcos da cidade. Um anjo de cena.
Um
“Anjo Negro” em pleno voo de livre arbítrio teatral.
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