em Luciano Brandão
por maneco nascimento
O Grupo de Teatro “Procópio
Ferreira” estreou nova proposta de teatro brasileiro de expressão piauiense.
Montagem de tradição reinventada e rupturas equilibradas ao ritmo dinâmico do
teatro vivo, que por aqui ganha fôlego de juventude, ciência e lúdico
concentrados.
Uma pérola do corolário
nelsonrodrigueano, “Anjo Negro”, de 1946, salta de seus setenta anos de boa
vida desempenhada e revigora-se em arte teatral viva, pulsante quente.
E, neste contextuado de pouco + da primeira
quinzena do século 21, pelas mãos de Luciano Brandão e elenco afiado, a montagem se alinha na sagaz
compreensão de Nelson Rodrigues, com toda propriedade de mergulho na aura do
nosso “Flor de Obsessão”.
“Anjo Negro” abriu estreia, na
última terça feira, 17 de maio, no Theatro 4 de Setembro, dentro do Projeto
Terças da Casa – Terça Teatro. Após a estreia, no Terça Teatro, a peça ainda
deveria seguir temporada a + um dia, 18 de maio, sempre para o horário das 20 horas.
Mas, a reabertura do Boca da Noite, versão 2016, acabou adiando a segunda apresentação da peça. Reagendada a nova data, quem não viu, fique na mutuca.
A direção de Luciano Brandão
concorre para afinar a dramaturgia pragmática e direta de Nelson Rodrigues.
Densidade e leveza equilibradas, na matemática lúdica de paixões, amores e
traições, crimes e pecados, sentimentos perversos e perversões degustadas, definem
o tabuleiro dos jogos dramáticos, desenhados na linha divisória do xadrez
emblemático e na realidade licenciada aos trágicos destinos da mítica “Anjo
Negro”.
A dramaturgia de palco, maturada
por Brandão, é inteligente, síntese de dramaticidade limpa, e consegue fazer-se
compreender claramente, sem recorrer a estereótipos, Nelson odiaria, e abre
outras margens a gestos, posturas, fisicalidade econômica e empertigada das
personagens que vociferam silêncios e silenciam exasperos, na feliz escolha de
melhor contagotar o obsessivo amor de perdição em Rodrigues.
(amores e traições nelsonrodriguenos/fotos: GT"Procópio Ferreira")
O cenário de portas vazadas e
dinâmicas que revelam e escondem, simultaneamente, os dois lados da vida como
ela é em “Anjo Negro”, é perspicaz. A engenharia de mover as passagens de
fugas, portais a ambientes distintos e transparentes, tem o pulsar da vida das
personagens que estão dentro e fora da história mostrada e vivem à expiação das
intimidades, enquanto a recepção as espia e se estarrece a cada regurgito
nelsonrodrigueano.
Ainda cenário, na completude
dramática, duas camas. A do casal e da traição e a do estupro, esta pendida do
teto feito troféu da memória do macho alfa sobre sua presa valiosa. Duas
cadeiras de encosto alto ambientam a sala; um cabide de pé colonial estilizado
que recebe as vestes do médico negro e uma mesinha (criado mudo) da alcova do
casal).
Completam a cenografia as
personagens que se mimetizam com o ambiente deslocável e aplicável às feições
de pequenas tragédias degustadas. Os figurinos estão à medida de composição das
psicologias e sombras e luzes das personagens e imergidos no jogo dramático de
cores, tecido, segunda pele arqueada às efígies do(a)s narrrado(a)s da esfinge
nelsonrodrigueanas.
A música casa com sala, quarto e
cozinha enlameados do universo obsessivo do pai do teatro moderno brasileiro. E
a luz vai se afinizando para claros e escuros que escondem e revelam as
verdadeiras faces de “Anjo Negro”.
Um elenco redondo, Kaio Rodrigues
(Ismael) densamente tranqüilo e econômico. Como era bom o meu perverso
favorito. Lanna Borges (Virgínia) se lança ao precipício numa ousada investida
entre a falsa doce e a pervertida santa. Lavra suas falas com muito calor, de
exercício confirmado, e charme de fatal trágica.
Clerys Derys (a Tia de Virgínia)
amplia experiência de mergulhos em Nelson e nos apresenta uma erecta e fria
senhora dos segredos de afogados e outras perfídias. Andeja pela cena, feito
harpia devorando o fígado quente da presa dominada. Gestos detalhados e
inflexões seguras de quem ouve o reverbero do monólogo interior.
Ronyere Ferreira (Elias, o irmão
branco e cego de Ismael) é de uma delicadeza atualizada de bem compreender a
personagem. Doce e suave na compleição da ingenuidade cheia de visões
românticas. Desliza falas com muita competência de viver a personagem e
debulhar verdades no ofício do fingimento. É doce ver o cego desfiar tanta
ternura e muita fidelidade a Rodrigues.
Gleiciane Silva (Ana Maria, a
filha branca e cega do triângulo das traições, Elias/Ismael/Virgínia) uma
presença viva das adolescentes constantes em obra de Nelson. A perversa
inocente, ou a criança alçada à maturidade na força de intempéries da catarse
instalada. Gera o segundo Anjo da trama, com muita eficiência. Cegos, os dois
anjos, (Elias e Ana Maria) enviesam as veredas de perdição em amores sem
redenção nelsonrodrigueanos.
Angélica Araújo (a empregada Hortência)
um misto de esperteza e atabalhoado, de dosar falas que exercem natureza de
humor mórbido e sutil, e alfinetar a presa e extorquir silêncios dos segredos
xeretados. É a quebra, o refresco e refrigério na tensão dramática instalada.
Faz bem seu tempo de ser e estar em Nelson.
“Anjo Negro”, pela ótica de
Luciano Brandão, atualiza o universo de Nelson, mantendo fidelidade de moderno
e instigante que há em Rodrigues e inteligencia o contingente de linguagem e linguística
apuradas à melhor feição de teatro vivo e detalhado na ciência arrazoada na
sensibilidade e estética cênicas.
Parabéns ao Luciano e ao GT“Procópio
Ferreira”. Há algo de novo no ar e a palcos da cidade. Um anjo de cena.
Um
“Anjo Negro” em pleno voo de livre arbítrio teatral.
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