segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Contos da cidade perdida

O descanso
por maneco nascimento

Era madrugada. Trabalhava na conclusão de trabalho acadêmico de conclusão de disciplina. Depois da volta da universidade, planejara concluir o trabalho, não adiar mais para não perder prazos. No avançar da noite, já em princípios de madrugada, a redação fluía boa e nada poderia perturbar o concentrado de Marília de Dirceu e o intertextual com deuses, mitos, heróis e mortais imbuídos entre o Olimpo e a terra de comuns.

Chovia intermitentemente fina, mas contínua, a "molhadeira", como se costuma dizer. As bátegas no telhado ninavam a inspiração ao texto em carruagem acelerada, incontinenti. De mais a pouco, ouviu-se um primeiro sinal a romper o silêncio da noite, embalada pela chuva.

- Anfrísio, Anfrísio...

Do lado de cá da parede, começaram a surgir especulações sobre o que estaria acontecendo para o velho senhor clamar pelo parente, àquela hora. Uma chamada, duas, três... e o silêncio respondia indiferente.

- Anfrísio, Anfrísio, Anfrísio...

Os pedidos repetiam-se, agora mais insistentes e incompassados. A chuva batia no chão, nos telhados e corria em seus filetes de ruídos de água a escorrer. Uma angústia batia pela espera, sem resposta. A chuva, o ruído das águas despencadas sobre mortais protegidos.  A espera. A insistência em chamar pelo filho. O pedido de socorro.

- Anfrísio, Anfrísio, Anfrísio, Anfríííísio...

A voz do velhinho, em insistência de pedido era entre cansada e irritadiça. O silêncio era rei. E o tempo e a hora corriam. Continuava a digitar os arrumados de discurso e persuasão para ganhar força de dominar Marília, imbricada entre romance de amores pastoris da Arcádia brasileira. Tomás Antônio Gonzaga vencera. Ganhara a resistência havida pela lírica árcade. Precisava correr dedos no teclado e ganhar tempo e concluir, ainda àquela noite, o trabalho.

Lá fora, tudo ainda estava como antes e provocado pelas repetidos gritos de socorro.
- Anfrísio, Anfríiiisiooo...

Houve uma mudança. Uma voz de mulher quebrou o frio silencioso da noite e rompeu com uma atitude.

- Anfrísio, teu pai ta te chamando.

Um resmungo veio como atenção à observação da mulher. Mexer-se, levantar-se, riscar fósforo, acender lamparina, abrir de porta, percurso pela cozinha da casa dos reclamados, pelo quintal, abrir de portão de ferro que separava o quintal do casal do quintal da casa do velhinho. Novo percurso, pelo corredor externo de acesso à casa do pai. Abrir de porta, burburinhos de entrada.

- Me ajuda aqui.

O velhinho havia adoecido. De idade avançada já vivera bem e era vizinho dos antigos, do começo da povoação do bairro e rua. Caíra da rede e, sem forças para soerguer-se, ficara ali, estatelado no chão até receber o socorro demorado. Morreu naquele dia, de pneumonia.

Coda – A noite, a chuva, o frio, a demora, a queda. A pneumonia levou o velhinho. Não se sabe se mais rápido pela queda. Foi-se. Descansou, em paz, depois de lutar por socorro solidário, que demorou muito. O socorro chegou para recolocá-lo na rede em que se aquietou, para último sono e sonhos de passagem. Descanso merecido.


(o descanso. m. nascimento. 11.01.2016 às 10h30)

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