O descanso
por maneco nascimento
por maneco nascimento
Era madrugada. Trabalhava na conclusão
de trabalho acadêmico de conclusão de disciplina. Depois da volta da
universidade, planejara concluir o trabalho, não adiar mais para não perder
prazos. No avançar da noite, já em princípios de madrugada, a redação fluía boa
e nada poderia perturbar o concentrado de Marília de Dirceu e o intertextual
com deuses, mitos, heróis e mortais imbuídos entre o Olimpo e a terra de
comuns.
Chovia intermitentemente fina, mas
contínua, a "molhadeira", como se costuma dizer. As bátegas no telhado ninavam a
inspiração ao texto em carruagem acelerada, incontinenti. De mais a pouco,
ouviu-se um primeiro sinal a romper o silêncio da noite, embalada pela chuva.
- Anfrísio, Anfrísio...
Do lado de cá da parede, começaram a
surgir especulações sobre o que estaria acontecendo para o velho senhor clamar
pelo parente, àquela hora. Uma chamada, duas, três... e o silêncio respondia
indiferente.
- Anfrísio, Anfrísio, Anfrísio...
Os pedidos repetiam-se, agora mais
insistentes e incompassados. A chuva batia no chão, nos telhados e corria em
seus filetes de ruídos de água a escorrer. Uma angústia batia pela espera, sem
resposta. A chuva, o ruído das águas despencadas sobre mortais protegidos. A espera. A insistência em chamar pelo filho.
O pedido de socorro.
- Anfrísio, Anfrísio, Anfrísio, Anfríííísio...
A voz do velhinho, em insistência de
pedido era entre cansada e irritadiça. O silêncio era rei. E o tempo e a hora
corriam. Continuava a digitar os arrumados de discurso e persuasão para ganhar
força de dominar Marília, imbricada entre romance de amores pastoris da Arcádia
brasileira. Tomás Antônio Gonzaga vencera. Ganhara a resistência havida pela
lírica árcade. Precisava correr dedos no teclado e ganhar tempo e concluir,
ainda àquela noite, o trabalho.
Lá fora, tudo ainda estava como antes
e provocado pelas repetidos gritos de socorro.
- Anfrísio, Anfríiiisiooo...
Houve uma mudança. Uma voz de mulher
quebrou o frio silencioso da noite e rompeu com uma atitude.
- Anfrísio, teu pai ta te chamando.
Um resmungo veio como atenção à
observação da mulher. Mexer-se, levantar-se, riscar fósforo, acender lamparina,
abrir de porta, percurso pela cozinha da casa dos reclamados, pelo quintal,
abrir de portão de ferro que separava o quintal do casal do quintal da casa do
velhinho. Novo percurso, pelo corredor externo de acesso à casa do pai. Abrir
de porta, burburinhos de entrada.
- Me ajuda aqui.
O velhinho havia adoecido. De idade
avançada já vivera bem e era vizinho dos antigos, do começo da povoação do
bairro e rua. Caíra da rede e, sem forças para soerguer-se, ficara ali,
estatelado no chão até receber o socorro demorado. Morreu naquele dia, de
pneumonia.
Coda – A noite, a chuva, o frio, a
demora, a queda. A pneumonia levou o velhinho. Não se sabe se mais rápido pela
queda. Foi-se. Descansou, em paz, depois de lutar por socorro solidário, que
demorou muito. O socorro chegou para recolocá-lo na rede em que se aquietou,
para último sono e sonhos de passagem. Descanso merecido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário