segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Contos da cidade esquizofrênica (II)

Amor de convencimento
por maneco nascimento

Como se repetia, pelo senso comum, no ditado popular, era “convencida pelo homem”. Conhecera-o numa ida à quitanda comprar víveres para preparar o almoço dos patrões. Ele um mulato sarará metido a galante. De pouca instrução, mas de esperteza brasileira para não botar defeito, quiçá em anti-heróis da literatura nacional, ou dos contos e causos populares. Ela, uma mestiçada de pele parda e cabelos acompanhando a cor da maioria das gentes da terra achada por Cabral.

O homem percebeu que a caipira se interessara por ele e jogou todas as fichas. Falou mais alto, gesticulou muito, puxou assunto com o dono da venda com mais ênfase de persuasão da sabedoria que usaria com ação para fisgar aquela moça. Ela não mais conseguiu disfarçar o interesse. Parecia fisgada feito peixe, ansiosa por morder uma isca. Foi um dia de barganha do galanteador, mas segurou a onda para não parecer tão fácil, de primeira.

As cenas de encontro na quitandinha foram se afinando e, quando pensou que não, já estava sendo cantada para ir a uma quermesse, no parquinho de diversões que havia se instalado nos festejos da igreja do bairro.

A abordagem dos encontros, após o turno de trabalho da empregada doméstica, evoluiu para novas saídas do casal e ousadias de fórum mais íntimo. Marinheira de primeira viagem na toca do lobo bobo, logo caiu na (des)graça da gravidez. Foi tudo assim, engravidou, teve que casar com o “bon vivant”, laçado pelo destino que julgava ser condutor.

A moça, interiorana, que viera para a cidade para sair das brenhas de seu Maranhão, acabara sendo acolhida na casa de um casal, como se fosse da família. De adolescente até a idade já avançada, quando teve seu primeiro romance de amor, somara vinte e sete anos de consentida convivência na casa dos bons patrões. Cuidara dos filhos casa, como se seus. Era de confiança, sabia de tudo dali e tinha liberdade de trânsito entre os familiares dos patrões e tempo de vivência saudável, como se fosse de casa. Mas estava grávida do namorado.

Os patrões resolveram a questão. Arrumaram os últimos anos dela na casa, com direitos trabalhistas de doméstica. Deram suas contas direitinho, na justiça para alguém que fora da família, e a liberaram para ir viver a vida de casada. Juntou os “panos de bunda”, mais uma vez na recorrência do ditado popular, e foi viver a vida corriqueira de recém casada com príncipe de seus sonhos.

Nos primeiros meses de gravidez até que andou fazendo uns bicos, mas estava grávida. Não achou novos patrões. O marido era motorista/entregador de correspondência numa firma de advocacia. Ganhava razoável, para um solteiro, e agora tinha que dividir a casa de aluguel com a mulher que caíra na malha de seus sonhos.

O galanteador manteve a vida de antes. Da sexta feira, quando voltava para casa, já chegava muito feliz, falando alto. Chegava, fazia as vezes de práxis doméstica e seguia para dar umas voltas. Chegava mais feliz, normalmente bebia. O rojão entrava pelo sábado e domingo. As primeiras tentativas da mulher, de conter a felicidade do marido, acabavam em discussões silenciosas e alguns baques surdos no escuro da casa e choros engolidos. 

O marido era assim mesmo, pensava a mulher enquanto degustava pequenas doses de amargura. Em casa, nos finais de semana, enquanto ele ia encontrar os amigos, em rodas de cervejas e conversas jogadas fora, ela lastimava-se:

- Diabo, viado sem vergonha! Devia estar aqui, me ajudando em casa.

Era o homem da casa e mantinha tudo, então tinha que desafogar. A barriga da mulher crescia e ela a repetir a cantilena, em voz súplice de socorro, à espera de um milagre de mudança.

- Vagabundo, deve estar bebendo com aquelas raparigas. Viado safado!

Era uma súplica de esquizofrenia (in)confidente, ganhando força e desejando, no apelo de borralheira, uma tábua de salvação. Ganhou os nove meses e ao fim uma menina. As coisas iriam mudar, agora tinham uma filha. Uma menina!

O homem era doido pela filhinha que já lhe sorria na inocência dos primeiros meses. Virou um pai presente, enquanto não podia fugir para suas necessidades e liberdade com as amizades lá fora. Agora a mulher tinha uma casa, um bebê e umas minhocas maiores criadas no jardim da solidão de mulher casada, dona de casa, mãe e convencida por seu homem.

- Viado sem vergonha. Devia pelo menos estar aqui pra cuidar da menina. Deve ta se divertindo com... viado safado!


Coda – os domingos eram os mesmos e se repetiam a cada semana para bons trezentos e sessenta e cinco dias do ano. Era uma mulher casada, tinha sua casa, marido, uma filhinha. E um homem que sempre chegava mais eufórico, quando voltava das saidinhas do final de semana. Sempre havia uma palavra de carinho a sua querida filha. O bebê já se desmanchava pelo pai. A mulher tinha um bom pai para a menina. Que mais iria querer.

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