por maneco nascimento
Das melhores surpresas contidas, entre tantas pérolas, no Festival de Teatro Lusófono - FestLuso 2016 - Ano Júlio Romão, a instalação da Embaixada do Nortea, dentro do Festival, foi uma inspiração e um chamamento a pensar teatro, + profusamente, e não ficar alheado só nos vestígios das luzes e dramas dos espetáculos convidados.
Na Casa da Cultura de Teresina, sempre nas manhãs de cinco dias (23, 24, 25, 26 e 27 de agosto) os encontros renderam outro Festival. Um de discussões pontuais, esclarecedoras e sinalizadoras da arte do drama e comédia que coma pelas beiradas e não dispense a antropofagia do prato principal.
Teatro, grupos, criadores-diretores, técnicas, métodos, estéticas, linguagens particulares à mesma matriz de variação sobre o mesmo tema e moto-contínuo da dinâmica de manter a pira de Baco acesa e a cena viva. Cinco dias pau dentro e sem fingidos orgasmos.
Os pontos d(rama), c(omédia), t(eatro), g(rana), m(mercados), s(sobrevivência) e outros, na ordem alfabética dramática, ganharam discussões acentuadas e pertinentes à inteligência de razão e sensibilidade colaborativas do teatro que se quer ter, ver, produzir e ganhar mercados e futuros.
5a. Edição Nortea para deixar claro que o FestLuso contém forma, fórmulas, língua e linguagem contidas, também, no Núcleo de Laboratórios Teatrais do Nordeste. Cada dia um acento agudo e circunflexionando conhecimento e pensamento gerador de propostas e propósitos, mostra, experimentos, resultados e variação de formas de ver e fazer teatro.
Na manhã do dia 27 de agosto, última manhã dos encontros, por exemplo, uma conversa produtiva, perspicaz e, sobretudo, antenada no mundo, que gira em torno da órbita do novo teatro brasileiro, foi o que se absorveu com as falas de Kil Abreu.
(Kill Abreu/acervo 5o. Nortea)
Tranquilo, objetivo, respeitoso, bom ouvinte e, com leituras afiadas sobre crítica de arte dramática e experiência de saber ver, sentir e extrair arte do teatro, repercutiu respostas sinceras, eloquentes, solidárias, políticas, crítico-estéticas e rebuscadas na linguagem, pela linguagem e para além dela.
Quem não absorveu nada, ou nada apreendeu da comunicação franca de Abreu, estava na hora errada, na sala errada e, talvez, no contexto de repertório alienígena do que foi dado à discussão. Eu, por certo, aprendi numa manhã o que meus bem creditados 53 e um quarto de idade ainda não me haviam influído tão bem.
"Quem influencia Leila Baby?", perguntava uma peça, paulista, conceitual dos anos oitenta, que cruzamos em um festival brasileiro capixaba. Já na época, os + antenados sabiam a resposta. Aquela resposta Kill Abreu reiterou um pouco + de duas décadas depois. O teatro é contínuo e o pensamento crítico revela as gavetas de memória sincrônicas. Aquela conversa com Kill, na manhã de 27 de agosto, foi 10+.
Mas ainda não havia sido tudo. Tinha uma demonstração de processo a ser apresentado aos presentes à última etapa 5a. Edição Nortea/FestLuso. Das 11h às 12h, na Sala de Dança da Casa de Cultura de Teresina, a Mostra de Processo pelo Espetáculo “Casca de Noz”, com Dionizio Cosme do Apodi, ator e diretor, intérprete criador do Grupo O Pessoal do Tarará (Rio Grande do Norte/São Paulo). Colega nosso de outras investidas, aceitou prontamente o convite de voltar ao Piauí e também ser Nortea.
A nova língua e linguagem, em método de ator e práxis expandida pelo diálogo com o ator e diretor Cacá Carvalho, brindou à Teresina uma nova roupa dada pelo brilho determinante de Dionizio do Apodi. Esse mesmo trabalho, ou a versão + hermética, romântico-contemporânea de investir teatro vivo, já havíamos, visto alguns anos atrás, numa das últimas versões do Festival Nacional de Monólogos "Ana Maria Rêgo". Belo! Ganhou todos os Prêmios(em dinheiro), mas nunca levou, é bom que não se esqueça nunca. A PMT e sua Fundação de Cultura (Monsenhor Chaves) deram um calote no artista, sua obra e sua Cia. de Teatro.
Mas evoluamos, sem omitir memórias, e cheguemos à manhã de 27 de agosto de 2016. Apodi se nos apresentou um belo trabalho de ator, em partitura contemporânea viva-voz dos mundos e interiores bichados da fé cega, de pregoeiros dos centros urbanos e furiosos furacões destruidores da crença limpa, que talvez nem resista mesmo. A personagem bem gerada à segunda versão de "Casca de Noz". Sim, tem uma primeira, segunda e uma terceira versões.
Essa segunda visão da orbe originus, vista na cidade, traz-nos uma personagem em conflito com o deus e o diabinho, rebentados na obra e luzes do obreiro de viseira evangélico-trágico.
(Apodi, no primeiro "Casca de Noz"/foto: divulgação)
Se, na primeira versão se se detinha numa delicada e sutil entrada na alma da personagem, em conflito entre amar, ou deixar-se à casta de amor religioso, entregue à fé ascética. Nesta nova visão, as tempestades chegam mais violentas e os raios caem muito + de 10 vezes mandamentados pelas fugas e recuos. Dores e amores de negar e forçar aceitação.
Um Apodi determinante a uma personagem determinista e claramente turva dos pântanos da sobrevivência, entre os céus que nos protejam e o inferno que nos persiga. O figurino, não poderia casar melhor andrajo, do ascético, em busca de equilíbrio. Uma segunda pele cobreada, no inconsciente do filho de Eva (a "ofendida" por Mamon e decaída do Éden), que na personagem abriria licença de herança da gênesis criacionista.
Na linha divisória da loucura de viver ou morrer com fé, ou pela falta dela, a roupa se mimetiza com o homem e sua capanga-rádio portátil, sua bíblia, sua massa de modelar vermelho-sangue, a garrafinha metálica de água, peça utilitária de feiras populares, que carrega líquido precioso à sede, ou água ungida quando vira milagre na cena, tudo faz parte. Complementariza, xipofagiza parte do corpo do homem "santo", contrarregras feito furúnculos saltados na pele do pastor das ruas.
A cartografia dramática que insana o homem e sua hora, rotacionados na atmosfera da mulher amada, amplifica dinamismo de mergulho da periferia ao centro do furacão, da frenesi neo-cristã, e a volta bombardeada do núcleo impressionista do sentimento e fé, ao expressionismo do fogo fátuo que queima o mortal, dependente da fúria da própria crença.
Outros signos geram o desenho de pedagogia dramática. A letra sagrada apregoada, aberta, beijada. O círculo de giz, de Jó, de proteção a ataques de demônios, ou de territorialidades entre o dentro e o fora da casca de noz, que imprime o "Casca de Noz" às identidades de nós e outros e nosotros, mergulhados no vendaval, nas tempestades de natureza humanas apresentada ao reflexo do criado à semelhança do Divino.
Dionízio libera uma energia que atomiza arte, talento, fórmula apascentada na razão e ciência estético-dramáticas e delibera fervor cênico e favor trágico brechtiniano, de apresentar sua personagem enleada na "Casca de Noz" mesmos.
Uns quarenta minutos tão densos e fortes, que parecem + tempo e, quando a personagem se despede da mulher, interagida da plateia, e deixa tatuada no chão uma garatuja, presença do amor "perdido", uma talvez pista do darwinismo enviesado pelo criacionismo, visto que o que é + fraco fica para trás e o sobrevivente segue seu caminho para a luz da fé creditada.
"Casca de Noz" é punk aliviado pelo brega (hit religioso) e pop década douro (falha do radinho-pochete). Um libelo de liberdade criativa e uma lírica poesia moderna, pintada de agressivo neocristianista de fé ascendente cega. Reflexivo da condição humana, em suas variações de interpretações de vida e fé. Obra aberta para sentir, rejeitar, ou amar pelo que se nos é apresentado.
Há nesse invólucro da semente em gestação poética, uma profecia dramática equilibrada e um desafio artístico, posto à prova dos nove, que faz com que "Casca de Noz" gere drama, mas germine do cerume um distanciamento que permita pensar o homem, sua condição e fé, seja para o lúdico e fingimento persuasivo de ator e método, seja para um ato único de arte e crença de Apodi para a cena brasileira.
(foto final, dia 27 de agosto de 2016/acervo 5o. Nortea)
Um dia ganho a +,
muito produtivo na semana Nortea.
(Nortea, em um de seus cinco dias/acervo 5o. Nortea)
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