sábado, 15 de julho de 2017

Stela

Uma Voz das Estrelas
por maneco nascimento

*Stela do Patrocínio (letras em preto). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (letras em vermelho). Organização e apresentação Viviane Mosé. E uma foto, marca d'água de mulher negra projetando a voz numa lata (leite em pó), tudo sobreposto num matiz lilás. [Capa]

Na [contracapa] o poema transcrito em letras brancas sobre o lilás, "meu nome verdadeiro é caixão enterro..." + as logos Museu Bispo do Rosário e Azougue Editorial e o código de barras da Obra.

Assim é apresentado o livro que conta da língua das Falas das Vozes da mulher negra, depositada numa Casa para “doentes mentais”, um manicômio que a guarda da cidade em que nasceu e a mantém viva, mas invisível, e sua visibilidade está, se impõe em sua Fala, a terapia que encontrou para ser ouvida.

E, quando ouvida, sua Vida e Obra em inteligentes, eficazes e estritamente ricos de licença Poética, mas de tanta vida vomitada às feições de discurso livre em terra de prisão. Prisioneira do estado, a Mulher, Poeta, intelectual de seu mundo favorecido pela força da Palavra se nos apresenta uma lição de sobrevivência no mundo de “doidos”, alienados à proteção da sociedade.
“Meu nome verdadeiro é caixão enterro Cemitério defunto cadáver Esqueleto humano asilo de velhos Hospital de tudo quanto é doença Hospício Mundos dos bichos e dos animais Os animais dinossauro camelo onça Tigre leão dinossauro macacos girafas tartarugas Reino dos bichos e dos animais é o meu nome Jardim Zoológico Quinta da Boa Vista Um verdadeiro jardim zoológico Quinta da Boa Vista"

Na lucidez e risco das Palavras que ambientam vida e sobrevivência no mundo dos bichos “enjaulados e à expiação pública” dos cuidadores que mantêm o cotidiano de quem se vê - em dentro - de fora no mundo em que está cerceada de liberdade de ir e vir e ser Stela do Patrocínio,a Mulher livre que para ali foi trazida e deixada à própria sorte.

Dos prospectadores de liberdades e vidas esquecidas surge o documento livro memórias e Falas infalíveis da Mulher que precisa ser ouvida. E, das Vozes que se lhe são de peculiar discurso de sobrevivência e liberdade no cativeiro ela vai dizendo a que veio e a que está no mundo forjado para ela pelos guardadores de esquecidos.

Mundo e Coisificação, [Parte I Um Homem Chamado Cavalo É O meu Nome] (37); [Antes era um macaco, à vontade, depois passei a ser cavalo (...)] (106); [Primeiro veio o mundo dos vivos Depois no entre a vida e a morte Depois dos Mortos Depois dos bichos e dos animais] (107); [Depois do entre a vida e a morte Depois dos mortos Depois dos bichos e dos animais Só fica a vontade como bicho e como animal] (108).

Da consciência de quem é, [Eu estava com saúde adoeci Eu não ia adoecer sozinha não mas eu estava com saúde Estava com muita saúde Me adoeceram me internaram no hospital E me deixaram internada E agora eu vivo no hospital como doente  O hospital parece uma casa O hospital é um hospital] (43); [É dito: pelo chão você não pode ficar porque lugar de cabeça é na cabeça Lugar de corpo é no corpo (...) Porque lugar de cabeça é na cabeça Lugar de corpo é no corpo] (44); [Eu sou Stela do Patrocínio Bem patrocinada Estou sentada numa cadeira pegada numa mesa nega preta e crioula Que a Ana me disse] (58).

Contexto geográfico, [Ainda era de Rio de Janeiro, Botafogo Eu me confundi comendo pão Eu perdi o óculos (...) Ela na vigilância do pão sem poder ter o pão (...) Dia tarde noite janeiro fevereiro dezembro Um homem chamado cavalo é o meu nome O bom pastor dá a vida pelas ovelhas] (42); [Mais de quinhentos milhões e quinhentos mil moradores morando no Teixeira Brandão, Jacarepaguá Núcleo Teixeira Brandão, Jacarepaguá E todo dia dá segunda terça quarta quinta...] (48)

e, ainda, [Eu era viajante Viajei no Rio de Janeiro São Paulo Petrópolis Belo Horizonte Minas Gerais Engenho de Dentro Sacra Família Itanhandu E aqui no Teixeira eu já sai várias vezes Fui à festa no Franco da Rocha Ulisses Viana bloco médico administração ver televisão] (62); [Meu passado foi um passado de areia Em mar de Copacabana Cachoeira de Paulo Afonso Bem dentro da Lagoa Rodrigues de Freitas No Rio de Janeiro (...)] (65).

Da família e das Estrelas, [Vim de importante família Família de cientistas, de aviadores De criança precoce prodígio poderes Milagres mistério] (59); [Parte III Nos Gases Eu me Formei, Tomei Cor] (67); [Eu não queria me formar Não queria nascer Não queria tomar forma humana Carne humana e matéria humana (...) Eu não tive querer nem vontade pra essas coisas (...)] (69); [ Eu sobrevivi do nada, do nada Eu não existia Não tinha uma existência Não tinha uma matéria Comecei a existir com quinhentos milhões e quinhentos mil anos Logo de uma vez, já velha Eu não nasci criança, nasci já velha (...)] (72).

Percepção das diferenças, [Eu sou seguida acompanhada imitada assemelhada Tomada conta fiscalizada examinada revistada Tem esses que são iguaizinhos a mim Tem esses que se vestem e se calçam igual a mim Mas que são diferentes da diferença entre nós É tudo bom e nada presta] (55); [Dias semanas meses o ano inteiro minuto segundo toda hora dia tarde a noite inteira Querem me matar (...) Eles querem saber como é que eu posso ficar nascendo Sem facilidade com dificuldade Por isso é que eles querem me matar] (56) [Olha quantos estão comigo Estão sozinhos Estão fingindo que estão sozinhos Pra poder estar comigo] (57).

Dual terceiro olho, [Eu já fui operada várias vezes Fiz várias operações sou toda operada Operei o cérebro, principalmente (...) Eles arrancaram o que está pensando E o que está sem pensar E foram examinar esse aparelho de pensar e não pensar (...) Estudar fora da cabeça Funcionar em cima da mesa Eles estudando fora da minha cabeça Eu já estou nesse ponto de estudo, de categoria] (61); [Eu não tenho cabeça boa não Não sei o que tem aqui dentro Não sei o que tem aqui dentro Não sei o que tem aqui dentro Eu sei que tem olho Mas olho pra fazer enxergar como? Quem bota pra enxergar se não sou eu que boto pra enxergar? Eu acho que é ninguém Enxerga sozinho Ele se enxerga sozinho] (81).

Reencarnada, [Não sou eu que gosto de nascer Eles é que me botam pra nascer todo dia E sempre que eu morro me ressuscitam me encarnam me desencarnam  me reencarnam Me formam em menos de um segundo] (71); [(...) Eu sei que eu tomei cor Nos gases eu me formei  Eu tomei cor (...)] (73); [Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo Eu era ar, espaço vazio, tempo E gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó Eu não tinha formação Não tinha formatura Não tinha onde fazer cabeça (...)] (74); [(...) Não sou do ar Do espaço vazio, do tempo, dos gases Não sou do tempo, não sou do tempo (...) Não sou dos gases, não sou da casa Não sou da família, não sou dos bichos Não sou dos animais. Sou de Deus Um anjo bom que Deus fez Pra sua glória e seu serviço] (83).

Tortura para desistência, [Eles me disseram pra mim Você não pode passar sem um homem Sem mulher sem criança sem os bichos sem os animais Mas alimentação e super-alimentação você também não pode ter] (90); [Eu não tenho coragem de enfrentar nada Eu tenho que enfrentar a violência A brutalidade  e a grosseria E ir à luta pelo pão de cada dia] (114).

Entre outras ironias, desforra do decaído, [Se eu pegar a família toda de cabeça pra baixo E perna pra cima Meter tudo dentro da lata do lixo e fazer um aborto Será que acontece alguma cosia comigo? Vão me fazer alguma coisa? Se eu pegar durante a noite novamente a família toda de cabeça pra baixo E perna pra cima Jogar lá de dentro pra fora Lá de cima cá pra baixo Será que ainda vai continuar  acontecendo alguma cosia comigo?] (123).

As defesas, [Me ensinaram a morder  chupar roer lamber e dar  dentadas] (125). Das indefesas que tornadas violadas, [Tinha terra preta no chão Um homem foi lá e disse Deita ai no chão pra eu te foder Eu disse não Vou me embora daqui Aí eu sai de lá vim andando Ainda não tinha esse prédio Não tinha essa portaria (...) [93];[Eu fui agarrada quando eu estava sozinha Não conhecia ninguém não conhecia nada (...) Eu não conheci nada eu era ignorante Depois eu fui agarrada pra relação sexual e pra foder Depois, só depois eu comecei ater noção e ficar sabendo (...)] (94) 

e repete-se dentro da violência, [Minha vida é só comer beber e fumar Só presto pra comer beber e fumar Eu aprendi comer beber e fumar Eu não sabia aprendi quando fui agarrada pra relação sexual E quando fui fodida] (95); [Eu já produzi uma criança no colo outra no corpo Sem eu saber que estava produzindo uma criança pequena (...) Era Rio de Janeiro Ainda era Botafogo E eu me confundi comendo pão ganhando pão] (96)


E entrevistada: Você é uma estrela mesmo, você brilha? [Eu queria brilhar ser limpinha gostar de limpeza Gostar do que é bom gostar da vida Saber ser mulher da vida Dar a vida por alguém que tivesse morrendo Que tivesse doente Fazer meu papel de doutora] (146, 147) ou Fala uma poesia pra gente. [Não Não tenho mais lembrança de poesia mais nenhuma] (147) e Tudo que você fala é poesia, Stela. [É só história que eu tô contando, é anedota] (147)


 "Stela do Patrocínio  Reino dos bichos e dos animais é o meu nome". Esta é sua história, o seu nome, sua Fala e sua sobrevivência no mundo dos homens. Um ótimo recorte de vida invisível tratado com delicadeza, acuidade e respeito à via humana, por Viviane Mosé.

Um prazer e um estarrecimento. Entre Poesia e licenças humanas de se fazer ouvir surge Stela do Patrocínio. Livro raro, mas leitura indispensável porque ainda existem Nises, Edmares, Vivianes e um mundo de pessoas que olham e vêm onde o mundo torna muitos invisíveis.

Eu Sou Stela do Patrocínio!

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