Chuva!
por maneco
nascimento
A
Piauhy Estúdio das Artes abriu temporada de estreia a sua + nova investida aos
palcos piauienses. A apresentação ao público da cidade deu-se nos dias 11 e 12
de outubro de 2013, às 20h, na Galeria do Clube dos Diários. A montagem de “Fogo”
é baseada em obra homônima de Vítor Gonçalves Neto. A peça atrai atenção, logo
de início, pelo calor que a dramaturgia apresenta já em seus elementos de
cenografia e adereços e musicalidade afins.
Na
fuga do palco italiano, a Cia. optou pelo mapa de arena. A cenografia aproxima
o público da densidade do que será apresentado. Não há vazios de utilidades
nos elementos composicionais, para ilustração a postes de luz a gás, lampiões,
candeeiros (lamparinas), velas candentes em tulipas adaptadas, pela Direção de
Arte (Vítor Sampaio), e um plano concentrado pelas ribaltas, de luzes ardentes,
que definem um retângulo (piscina de fogo) em que se desenrola o enredo
dramático, elaborado por Adriano Abreu.
Há
três planos altos que quebram o baixo, no retângulo de fogo. O central, em que
se dão as cenas de destaque das personagens para tortura, pira humana infligida
e arte pregoeira de atiçar fogo em espetáculos à expiação pública. Nos dois
extremos do retângulo, os outros planos altos auxiliares. Um que funciona como
casa da personagem Lucinda, a mártir do inferno da cidade baixa em chamas e o outro
como ponto de observação, ou de vida (des)protegida das personagens outras que
revivem as mortes no pirancídio da década de fogo.
O
espetáculo já começa aquecido por uma batida de embolada, primeira entrada da
cultura popular. Os narradores da cena repercutem a variação sobre o mesmo tema
e adiantam o sonho da anti-heroína que sonha em conhecer o mar. Os elementos
populares vão-se assomando, para ritos religiosos, mitos e lendas ribeirinhos e
revista histórica em memórias da fé profanada e recuperada, coerção e ritos de
passagem à justiça cega do poder que se impõe.
Há o
profeta que prega no deserto da falta de humanidade, que ali será tema de
dramaticidade das vidas comezinhas, com suas naturezas simples e trágicas,
desencadeadas por mistérios humanos, sob a pecha de “cura” de falhas sociais e culpas
inconscientes coletivas.
As
intertextualidades são imprescindíveis e endossam a crença popular e cultura do
mundo circular. Lucinda, a protagonista, uma espécie de Santa Joana Darc, ao
revés de ofender ao deus dos homens, ou uma Luzia Homem que sonha com o mar.
Seu mar de fogo, talvez a transcenda para lugar + aprazível, longe de todas as
perdas sofridas por força estranha da vilania do fogo.
A mulher
popular, a puta do bairro dos Cajueiros e vizinha de Lucinda, também
transversaliza com entidade afro-brasileira e se impõe para uma Pomba Gira.
Entre o bem e o mal, uma mulher livre e presa ao inconsciente da paga de ser
como é, ou não ser e dever o tributo consequente.
Quatro
atores (re)buscam as personagens construtoras do Fogo. Vítor Sampaio, o Profeta
do fim do mundo, ou beato das plagas sujeitas à redenção dos céus; a
prostituta, amiga de Lucinda; o marido de Lucinda, torturado pela milícia do
fogo, e o comovente representante do amor de perdição da personagem envolta nas
chamas do destino. Enquanto impõe-se como o fogo, literalmente, numa variação
feminino/masculino do anjo decaído do apocalipse, é de licença lúdica irrepreensível.
Carlos
Aguiar e David Santos são pregoeiros da vida e da morte na tragédia anunciada,
numa concentração composicional reta. Como soldados da morte, ou populares da
vida consequente, nada parece destoar deles ao conjunto. Algozes e vítimas da
própria história, em memória revisitada, as personagens que defendem estão
definidas para o crime premeditado pela ciência da dramaturgia apresentada.
Érica
Smith é Lucinda, a mãe, mulher, lavadeira da beira do cais, sonhadora e
dona da coragem de viver e morrer pela defesa da vida, que não parece compreender
por que assim se dá. A catarse purga-a das culpas desconhecidas, impostas pela
justiça dos deuses de barro. Sua Lucinda é metaforizada como vítima da caça às
bruxas pela santa inquisição, invenção humana para discurso divino. Érica se garante
e Lucinda se estabelece muito bem.
O
elenco enxuto e muito presente, a seu turno e particularidade de cada
intérprete, enxuga o pranto enquanto queima, à reinvenção da crônica social reproduzida
por Vítor G. Neto e na licença poética que caracteriza teatro de ótima
qualidade. Os figurinos, assim como todos os emblemas e signos assinalados na
Direção de Arte, nunca ofendem a proposta. Tecidos de algodão cru ganham forma
que vestem e despem as personagens, numa estética rica de detalhes e
praticidade de contar o drama.
A
sonoplastia e enredos musicais direcionados por Arnaldo Pacovan cosem as pontas
já, detidamente, encaminhadas a alinhavo sonoro em compleição das falas sociais
de drama prospectado. A iluminação de Pablo Erickson afina conceito e
plasticidade que inflamam resultado técnico operacional e desenho inteligente
ao estético solicitado. Completam a reserva técnica, os trabalhos de of (ao
vivo) de Silmara Silva que apresenta uma Ladainha da Mãe às agruras e sorte, e
a maquiagem que também leva sua assinatura.
Dos
riscos simbólicos aplicados, de dramaturgia ateada que Adriano Abreu assinala
em adaptação livre, estão a negação dos santos do inventário popular, Santa
Luzia que dá luz e calor aos olhos; São José, padroeiro do sertão e milagreiro
às chuvas que amainam o fogo na terra seca; São Jorge (de Ogun) que defende o
povo dos dragões da maldade e São Francisco (das Chagas, do Canindé) de Assis,
o grande pai do sertão. As gentes negam seus santos para requerer qualquer
solução que quebre o paradigma da injustiça que os céus não resolvem.
"Fogo",
a peça, se espelha em conto que retrata período obscuro da higienização de Teresina,
em nome do bellepoquismo que instaurava novidade no país e ressoava em mudanças
e progresso que se impunham para afastar o que enfeava o centro da cidade. Nos
anos quarenta do século XX, a cidade testemunhou dias infamantes e inflamantes
das vidas simples de bairros da capital.
Quando
as suspeitas recaíram sobre (des)mandos do próprio governo da época, a polícia
resolveu endurecer para coibir curiosidades e interesse popular. Era proibido
se usar a palavra fogo, especialmente em dias ardentes. Como o homem se adapta
ao meio, a população adotou a metáfora “Chuva!” para designar alarme e proteção
contra o fogo ateado às casas de palha. A população alertava os seus e desdobrava
a violência oficializada da polícia.
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