domingo, 13 de outubro de 2013

Arte e reflexão

Chuva!
por maneco nascimento
     
A Piauhy Estúdio das Artes abriu temporada de estreia a sua + nova investida aos palcos piauienses. A apresentação ao público da cidade deu-se nos dias 11 e 12 de outubro de 2013, às 20h, na Galeria do Clube dos Diários. A montagem de “Fogo” é baseada em obra homônima de Vítor Gonçalves Neto. A peça atrai atenção, logo de início, pelo calor que a dramaturgia apresenta já em seus elementos de cenografia e adereços e musicalidade afins.

Na fuga do palco italiano, a Cia. optou pelo mapa de arena. A cenografia aproxima o público da densidade do que será apresentado. Não há vazios de utilidades nos elementos composicionais, para ilustração a postes de luz a gás, lampiões, candeeiros (lamparinas), velas candentes em tulipas adaptadas, pela Direção de Arte (Vítor Sampaio), e um plano concentrado pelas ribaltas, de luzes ardentes, que definem um retângulo (piscina de fogo) em que se desenrola o enredo dramático, elaborado por Adriano Abreu.

Há três planos altos que quebram o baixo, no retângulo de fogo. O central, em que se dão as cenas de destaque das personagens para tortura, pira humana infligida e arte pregoeira de atiçar fogo em espetáculos à expiação pública. Nos dois extremos do retângulo, os outros planos altos auxiliares. Um que funciona como casa da personagem Lucinda, a mártir do inferno da cidade baixa em chamas e o outro como ponto de observação, ou de vida (des)protegida das personagens outras que revivem as mortes no pirancídio da década de fogo.

O espetáculo já começa aquecido por uma batida de embolada, primeira entrada da cultura popular. Os narradores da cena repercutem a variação sobre o mesmo tema e adiantam o sonho da anti-heroína que sonha em conhecer o mar. Os elementos populares vão-se assomando, para ritos religiosos, mitos e lendas ribeirinhos e revista histórica em memórias da fé profanada e recuperada, coerção e ritos de passagem à justiça cega do poder que se impõe.

Há o profeta que prega no deserto da falta de humanidade, que ali será tema de dramaticidade das vidas comezinhas, com suas naturezas simples e trágicas, desencadeadas por mistérios humanos, sob a pecha de “cura” de falhas sociais e culpas inconscientes coletivas.

As intertextualidades são imprescindíveis e endossam a crença popular e cultura do mundo circular. Lucinda, a protagonista, uma espécie de Santa Joana Darc, ao revés de ofender ao deus dos homens, ou uma Luzia Homem que sonha com o mar. Seu mar de fogo, talvez a transcenda para lugar + aprazível, longe de todas as perdas sofridas por força estranha da vilania do fogo.

A mulher popular, a puta do bairro dos Cajueiros e vizinha de Lucinda, também transversaliza com entidade afro-brasileira e se impõe para uma Pomba Gira. Entre o bem e o mal, uma mulher livre e presa ao inconsciente da paga de ser como é, ou não ser e dever o tributo consequente.

Quatro atores (re)buscam as personagens construtoras do Fogo. Vítor Sampaio, o Profeta do fim do mundo, ou beato das plagas sujeitas à redenção dos céus; a prostituta, amiga de Lucinda; o marido de Lucinda, torturado pela milícia do fogo, e o comovente representante do amor de perdição da personagem envolta nas chamas do destino. Enquanto impõe-se como o fogo, literalmente, numa variação feminino/masculino do anjo decaído do apocalipse, é de licença lúdica irrepreensível.

Carlos Aguiar e David Santos são pregoeiros da vida e da morte na tragédia anunciada, numa concentração composicional reta. Como soldados da morte, ou populares da vida consequente, nada parece destoar deles ao conjunto. Algozes e vítimas da própria história, em memória revisitada, as personagens que defendem estão definidas para o crime premeditado pela ciência da dramaturgia apresentada.

Érica Smith é Lucinda, a mãe, mulher, lavadeira da beira do cais, sonhadora e dona da coragem de viver e morrer pela defesa da vida, que não parece compreender por que assim se dá. A catarse purga-a das culpas desconhecidas, impostas pela justiça dos deuses de barro. Sua Lucinda é metaforizada como vítima da caça às bruxas pela santa inquisição, invenção humana para discurso divino. Érica se garante e Lucinda se estabelece muito bem.

O elenco enxuto e muito presente, a seu turno e particularidade de cada intérprete, enxuga o pranto enquanto queima, à reinvenção da crônica social reproduzida por Vítor G. Neto e na licença poética que caracteriza teatro de ótima qualidade. Os figurinos, assim como todos os emblemas e signos assinalados na Direção de Arte, nunca ofendem a proposta. Tecidos de algodão cru ganham forma que vestem e despem as personagens, numa estética rica de detalhes e praticidade de contar o drama.

A sonoplastia e enredos musicais direcionados por Arnaldo Pacovan cosem as pontas já, detidamente, encaminhadas a alinhavo sonoro em compleição das falas sociais de drama prospectado. A iluminação de Pablo Erickson afina conceito e plasticidade que inflamam resultado técnico operacional e desenho inteligente ao estético solicitado. Completam a reserva técnica, os trabalhos de of (ao vivo) de Silmara Silva que apresenta uma Ladainha da Mãe às agruras e sorte, e a maquiagem que também leva sua assinatura.

Dos riscos simbólicos aplicados, de dramaturgia ateada que Adriano Abreu assinala em adaptação livre, estão a negação dos santos do inventário popular, Santa Luzia que dá luz e calor aos olhos; São José, padroeiro do sertão e milagreiro às chuvas que amainam o fogo na terra seca; São Jorge (de Ogun) que defende o povo dos dragões da maldade e São Francisco (das Chagas, do Canindé) de Assis, o grande pai do sertão. As gentes negam seus santos para requerer qualquer solução que quebre o paradigma da injustiça que os céus não resolvem.

"Fogo", a peça, se espelha em conto que retrata período obscuro da higienização de Teresina, em nome do bellepoquismo que instaurava novidade no país e ressoava em mudanças e progresso que se impunham para afastar o que enfeava o centro da cidade. Nos anos quarenta do século XX, a cidade testemunhou dias infamantes e inflamantes das vidas simples de bairros da capital.

Quando as suspeitas recaíram sobre (des)mandos do próprio governo da época, a polícia resolveu endurecer para coibir curiosidades e interesse popular. Era proibido se usar a palavra fogo, especialmente em dias ardentes. Como o homem se adapta ao meio, a população adotou a metáfora “Chuva!” para designar alarme e proteção contra o fogo ateado às casas de palha. A população alertava os seus e desdobrava a violência oficializada da polícia.

“Fogo”, numa adaptação livre de conto homônimo de Vítor Gonçalves Neto, reverbera a obra, o autor, a memória social e a história local, e o adaptador e a dramaturgia consignada por Adriano Abreu. É obra ardente. Renasce das cinzas dos anos quarenta e aplica crítica social, enquanto licencia arte e cultura de palco ao histórico da dramaturgia nacional. Chuva!

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